O Juízo 100% Digital: implantação, novidades e consectários
Ana Paula Dalpizzol e Lucas Auer
Desde que o Conselho Nacional de Justiça (“CNJ”) publicou sua Resolução nº 345 (1), ainda no final de 2020, muitas novidades permearam o cenário jurídico no que diz respeito à informatização dos processos judiciais e ao uso da tecnologia para o acesso à Justiça: os Tribunais de todo o país foram autorizados a adotar medidas necessárias à implementação do chamado “Juízo 100% Digital” (2). Com esta nova sistemática, todos os atos processuais, desde o ajuizamento da demanda, passarão a ser exclusivamente praticados, por meio eletrônico e remoto, pela internet.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais adotou prontamente o novo regime, tendo oficializado tal decisão ainda em novembro de 2020, através da Portaria Conjunta nº 1.088/2020, sob o pretexto de imprimir ainda mais celeridade e eficiência à prestação jurisdicional – uma cobrança antiga da sociedade em geral.
A adoção, entretanto, apesar de oficializada, ainda não possui substrato prático. Isso porque, um levantamento realizado pelo CNJ em todo o Brasil, atualizado em janeiro de 2022 (3), informa que no âmbito do estado de Minas Gerais, por exemplo, somente 28% das serventias já implementaram o “Juízo 100% Digital”. Algumas unidades federativas não alcançam nem mesmo a marca de 15%, destacando-se entre estas o Rio de Janeiro, em que apenas 5% das serventias o implantaram, menor número do país. Por outro lado, os estados de Goiás e Pernambuco seguem liderando com pelo menos 95% de suas serventias aptas a colocarem a medida em prática.
De toda sorte, independentemente do número de serventias com “Juízo 100% Digital” nos estados, fato é que ainda há muito que se caminhar para a efetivação de uma justiça inteiramente virtual no Brasil, a fim de não se perder de vista a higidez dos trâmites e atos processuais. A efetivação da medida demanda infraestrutura – não só tecnológica, inclusive – do Poder Judiciário e de todos aqueles que, em qualquer medida, estejam envolvidos nos processos (partes, interessados e, por óbvio, advogados).
Veja-se, por exemplo, que uma das diretrizes do “Juízo 100% Digital” refere-se à diversificação dos canais de atendimento ao jurisdicionado. Em sua cartilha explicativa, o CNJ informa que os tribunais deverão fornecer “infraestrutura de informática e de telecomunicação necessárias ao funcionamento das unidades jurisdicionais”, as quais deverão “prestar, no horário de atendimento ao público, atendimento remoto por telefone, e-mail, chamadas de vídeo, aplicativos digitais ou outros canais de comunicação definidos pelo tribunal”.
Além disso, no que se refere às audiências e às sessões de julgamento, que deverão ser realizadas de forma exclusivamente remota, através de videoconferências – a exemplo do que já vem sendo adotado em função da pandemia do coronavírus –, o CNJ informa que será possível que o jurisdicionado utilize-se de “salas disponibilizadas pela Justiça nos fóruns”. Neste ponto, é importante atentar-se que a disponibilização de espaços, maquinário e pessoal para a realização de tais atos é indispensável não só para a consecução da paridade de armas dentro do processo, como também para que possa assegurar a lisura da produção de provas em audiências.
Uma das diretrizes mais controversas, no entanto, refere-se à comunicação dos atos processuais. De acordo com os regulamentos emitidos pelo CNJ, tanto autor quanto seus procuradores deverão, no momento da propositura da ação, informar endereço eletrônico e um número de celular. Assim, a citação, a notificação e a intimação poderão ser realizadas por qualquer meio eletrônico, incluindo até mesmo mensagens via SMS e aplicativos de mensagens instantâneas, como WhatsApp e Telegram.
O tema, porém, merece grande atenção, já que a certificação das comunicações processuais é fundamento básico para a garantia do Devido Processo Legal. Pergunta-se: a publicidade dos atos processuais continuará sendo efetivada pelas vias atuais, como pelos Diários de Justiça? Se a resposta for negativa, não seria necessário alteração na legislação para tanto?
Além do mais, há que se considerar que a confiabilidade e segurança dos meios tecnológicos ainda geram dúvidas, sobretudo diante de casos de vazamento de dados e, ainda, de clonagem de números telefônicos e de contas em aplicativos, que poderão ser utilizados para a comunicação.
Outro aspecto a ser sopesado é que muitos escritórios de advocacia e empresas especializadas possuem estrutura consolidada de controle de prazos e comunicações. Qualquer alteração abrupta desta sistemática requer a devida preparação e participação dos profissionais envolvidos, a fim de que não sejam gerados prejuízos de grande repercussão aos mais interessados nas causas: os próprios litigantes.
É necessário consignar, contudo, que a não obrigatoriedade de adesão à nova sistemática é um dos sustentáculos da medida. A escolha será feita pelo demandante quando da distribuição da ação e a parte contrária poderá se opor a essa decisão até o momento da contestação. Assim, pode ser exigida justificativa para eventual recusa, como tem sido constatado em alguns casos.
A pandemia trouxe consigo a urgência da modernização e, com isso, transformou o Judiciário, que precisou recriar e repensar a forma de prestar os serviços judiciais. Não há dúvidas de que o “Juízo 100% Digital” possui grande potencial de conferir maior celeridade aos processos e ampliar o acesso à justiça, bem como de aproximar o Estado-juiz do compasso social acelerado pela tecnologia.
Contudo, é necessário cautela, paciência e parcimônia por parte de advogados, juízes e litigantes. Ao Poder Judiciário, cabe considerar a importância da criação de políticas institucionais focadas em resultados consistentes, a fim de que a implementação desses tipos de medidas seja realmente efetiva, para não parecer, na prática, que ficou somente no papel.
Gostou do tema e se interessou pelo assunto? Mais informações podem ser obtidas junto à equipe do contencioso cível do VLF Advogados.
Lucas Auer
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Ana Paula Dalpizzol
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 345/2020. DJe/CNJ nº 331/2020 de 09 de outubro de 2020.
(2) Conselho Nacional de Justiça. Cartilha Juízo 100% Digital. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/10/WEB_cartilha_Juizo_100porcento_digital_v3.pdf. Acesso em: 24 jan. 2022.
(3) Conselho Nacional de Justiça. Mapa da Implantação do Juízo 100% digital. Disponível em: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=e18463ef-ebdb-40d0-aaf7-14360dab55f0&sheet=5dcb593d-ce80-4497-9832-656d0c3b18ed&lang=pt-BR&theme=cnj_theme&opt=ctxmenu,currsel. Acesso em: 24 jan. 2022.