A Convenção de Viena como referência de usos e costumes internacionais
Marina Leal e Aline Piteres
Com a promulgação do Decreto Executivo nº 8.327, de 16 de outubro de 2014, o Brasil recepcionou em seu ordenamento a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (“CISG”), passando a ser o 79º Estado-Parte da mais bem sucedida lei uniforme sobre trocas mercantis atualmente em vigor (1). Adotada por países representantes da maior parte do valor negociado no comércio mundial (2), a CISG regula a formação e execução dos contratos de compra e venda internacional de mercadorias, assim como as obrigações das partes contratantes.
Apesar da aprovação desta norma desde 2012 (3) e sua promulgação desde 2014, uma das primeiras aplicações da CISG pelo judiciário brasileiro deu-se, apenas, em 2017. Em caso que passou a ser conhecido como o “caso dos pés de galinha”, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (“TJRS”) confirmou sentença de primeiro grau da comarca de Estância Velha e aplicou a CISG para fundamentar a “rescisão” contratual de contrato de compra e venda de mercadorias (4).
A referida aplicação, no entanto, curiosamente não se deu em função da vigência da norma no Brasil. No entendimento exposto na decisão, a CISG, a princípio, seria inaplicável ao caso concreto, visto que a celebração do contrato de compra e venda de mercadorias deu-se antes de sua vigência no plano jurídico interno. Contudo, o TJRS entendeu que “a Convenção constitui expressão da praxe mais difundida no comércio internacional de mercadorias, estando por isso ao alcance dos Juízes nacionais, até mesmo em função da norma do artigo 113 do Código Civil, que determina a interpretação dos negócios jurídicos de acordo com os usos e costumes”. Ou seja, mesmo para relação existente antes da vigência da CISG no Brasil foi determinada a aplicabilidade da norma, a partir dos parâmetros interpretativos dos contratos, adotados pelo Código Civil de 2002 (5) (6).
Caso semelhante foi observado recentemente, no Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJSP”), em que a CISG também foi aplicada mediante a incidência do art. 113 do Código Civil, como “usos e costumes do comércio internacional” (7). As partes litigavam a respeito de obrigações decorrentes de compra e venda internacional de kiwis, para a qual inexistia contrato escrito celebrado entre elas. A empresa apelada alegava que não havia adquirido tais frutas, que inexistia contrato escrito, e, portanto, nenhum pagamento era devido à apelante. O TJSP, entretanto, diante das provas produzidas nos autos, entendeu que havia negócio jurídico celebrado entre a partes pouco antes da promulgação da CISG, o qual, ainda assim, deveria ser regido por esta norma. Apontou que a despeito de a República Federativa do Brasil ter aderido à CISG pouco tempo depois da celebração do negócio jurídico, seria o caso de aplicar a norma enquanto soft law, uma vez que a mesma, desde 1980, refletiria os usos e costumes do direito do comércio internacional, do qual as empresas brasileiras participam ativamente.
Verifica-se, portanto, a existência de decisões que reconhecem a utilização da CISG para além de sua aplicação como norma vigente no país.
Tal prática, todavia, poderia ser questionada. Em que pese a CISG ter sido aplicada como instrumento de soft law nas decisões acima, trata-se de uma lei vinculante para os países signatários. Ou seja, existindo dúvidas acerca da norma que rege determinado contrato, é defensável que a aplicação da CISG estaria sujeita à análise das normas de conflito de leis, previstas no ordenamento jurídico. Isso quer dizer que a CISG só poderia ser aplicada se assim indicassem as normas que determinam a lei que rege determinado contrato, não como usos e costumes internacionais.
É passível de indagação também o porquê da aplicação da CISG e não de outras regras, diante da existência, por exemplo, de normas de soft law como os Princípios Unidroit, que objetivam uniformizar o direito privado internacional e são amplamente conhecidos como meio de integração e interpretação do direito internacional.
O reconhecimento da CISG como usos e costumes do comércio internacional, de todo modo, importa uma crescente relevância de seu conteúdo para o direito brasileiro e para as relações comerciais internacionais que tocam o país. Isto posto, requer especial atenção os contratos de compra e venda internacional de mercadorias que possam estar abarcados por esta regra, ainda que ela não tenha sido indicada como legislação que rege o contrato.
O tema é de grande relevância prática e a Equipe de Contratos e Arbitragem do VLF está à disposição em caso de quaisquer dúvidas.
Marina Leal
Advogada da Equipe de Contratos e Arbitragem
Aline Piteres
Advogada da Equipe de Contratos e Arbitragem
(1) e (2) Disponível em: https://www.cisg-brasil.net/a-cisg-1. Acesso em: 22 fev. 2022.
(3) Decreto Legislativo nº 538, de 18 de outubro de 2012.
(4) Apelação Cível Nº 70072362940, Décima Segunda Câmara Cível, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 14/02/2017.
(5) Redação vigente em 2017:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Redação atual:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:
I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio;
II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio;
III - corresponder à boa-fé;
IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e
V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.
(6) Nota-se que há ressalvas quanto ao caminho tomado pela decisão para aplicação da CISG, uma vez que esta poderia ter sido aplicada por um caminho “mais simples”, já que, pelo emprego de seu artigo 1.1.b, haveria a incidência do Direito dinamarquês e, consequentemente, a aplicação da CISG, por esta constituir o Direito dinamarquês de compra e venda internacional de mercadorias. Cf. KUYVEN, Fernando. PIGNATTA, Francisco. Judiciário brasileiro aplica pela primeira vez a CISG. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-abr-19/judiciario-brasileiro-aplica-primeira-vez-cisg. Acesso em: 22 fev. 2022.
(7) TJSP 32ª Câmara de Direito Privado. Apelação Cível nº 1017219-07.2017.8.26.0004. Rel. Des. Rodolfo César Milano. J. em 09.12.2021.