Impossibilidade de cumulação de arras com cláusula penal compensatória
Gabrielle Aleluia, Mariana Simões e Sílvia Badaró
Na celebração de contratos é muito comum que as partes estipulem uma multa para o caso de descumprimento total ou parcial da obrigação ou de retardamento no seu cumprimento. Essa multa é conhecida como Cláusula Penal e está prevista nos artigos 408 a 416 do Código Civil Brasileiro.
O Código Civil traz, em seu art. 409 (1), duas categorias de Cláusula Penal: a compensatória e a moratória. A primeira se refere à inexecução completa do contrato ou de alguma cláusula específica. A segunda está relacionada exclusivamente ao atraso no cumprimento de uma ou todas as obrigações estipuladas no contrato. Nas palavras da Ministra Nancy Andrigh (2):
A cláusula penal constitui pacto acessório, de natureza pessoal, por meio do qual as partes contratantes, com o objetivo de estimular o integral cumprimento da avença, determinam previamente uma penalidade a ser imposta ao devedor na hipótese de inexecução total ou parcial da obrigação, ou de cumprimento desta em tempo e modo diverso do pactuado.
A cláusula penal compensatória tem previsão legal no art. 389 (3) do Código Civil, segundo o qual o devedor responde por perdas e danos, mais juros e atualização monetária de acordo com os índices oficiais regulamente estabelecidos, e honorários de advogado quando não cumprir a obrigação. Nesse caso, a multa compensatória representa uma espécie de indenização previamente ajustada entre as partes pelo descumprimento total ou parcial do contrato.
Há, porém, discussão se a cláusula penal (que tem natureza indenizatória) poderia ser cumulada com retenção das arras. Para que se entenda, é preciso ter em mente que as arras são uma espécie de sinal para garantir o negócio firmado entre as partes, o que pode ser feito por meio de dinheiro ou de um algum bem móvel.
Em outras palavras, correspondem à “quantia ou bem móvel entregue por um dos contraentes ao outro, por ocasião de celebração de contrato, como sinal de garantia do negócio”, e têm por finalidades precípuas: (i) firmar a presunção de acordo final, tornando obrigatório o ajuste (caráter confirmatório); (ii) servir de princípio de pagamento (se forem do mesmo gênero da obrigação principal); e (iii) prefixar o montante das perdas e danos devidos pelo descumprimento do contrato ou pelo exercício do direito de arrependimento, se expressamente estipulado pelas partes (caráter indenizatório) (4).
Em linhas gerais, portanto, as arras podem ser “confirmatórias” ou “penitenciais”, sendo que nesta última hipótese, elas teriam uma função indenizatória.
A esse respeito, o art. 420 do Código Civil (5) estabelece que as arras têm função indenizatória quando o contrato prevê o direito de arrependimento. Neste caso, se o negócio for desfeito por quem prestou a garantia, ele irá perdê-la em benefício da outra parte. Mas, se o arrependimento ocorrer em relação à pessoa que as recebeu, ele deverá devolvê-las, além de pagar o seu equivalente à parte contrária.
A função indenizatória das arras também está presente no art. 418 do Código Civil (6), que trata da hipótese de retenção das arras ou de sua devolução, mais o equivalente, na hipótese de inexecução do contrato, independentemente de previsão contratual. A esse respeito, o col. STJ já decidiu que:
de acordo com o disposto no art. 418, mesmo que as arras tenham sido entregues com vistas a reforçar o vínculo contratual, tornando-o irretratável, elas atuarão como indenização prefixada em favor da parte “inocente” pelo inadimplemento do contrato, a qual poderá reter a quantia ou bem, se os tiver recebido, ou, se for quem os deu, poderá exigir a respectiva devolução, mais o equivalente (4) (REsp 1617652/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/09/2017, DJe 29/09/2017)
As arras penitenciais, portanto, também teriam a finalidade de “prefixar o montante das perdas e danos devidos pelo descumprimento do contrato ou pelo exercício do direito de arrependimento, se expressamente estipulado pelas partes” (7). Logo, na hipótese de inadimplemento contratual, a possibilidade de retenção das arras atuaria de forma semelhante à cláusula penal compensatória, ensejando discussão sobre a possibilidade ou não de cumulação dos dois institutos, sob pena de violação do princípio do non bis in idem (princípio da dupla condenação).
Ao julgar o Recurso Especial nº 1.617.652 – DF, o col. STJ considerou a cumulação inadmissível, justamente em razão da natureza indenizatória das arras na hipótese de inexecução do contrato. Naquela ocasião, a Terceira Turma entendeu que se houver a estipulação dos dois institutos no contrato (cláusula penas e arras), deve prevalecer a retenção das arras ou a sua restituição mais o equivalente, a depender de quem se imputa a inexecução contratual (8), em razão da sua natureza real. Repare:
Se previstas cumulativamente para o inadimplemento contratual, entende-se que deve incidir exclusivamente a pena de perda das arras, ou a sua devolução mais o equivalente, a depender da parte a quem se imputa a inexecução contratual. Em primeiro lugar porque as arras, por constituírem prestação já realizada mediante a entrega de uma soma em dinheiro ou outro bem móvel, possuem natureza real, que prevalece sobre a natureza meramente pessoal da cláusula penal. As arras representam prestação entregue, enquanto a cláusula penal é prestação apenas prometida. Além disso, a incidência das arras em detrimento da cláusula penal outorga efetividade à disposição constante no art. 419 do CC, segundo o qual as arras valem como “taxa mínima” da indenização à parte inocente pela inexecução do contrato, a qual, ainda, pode pedir indenização suplementar se provar maior prejuízo do que o valor previamente estimado, independentemente de previsão contratual nesse sentido.
Neste caso, como destacado pelo acórdão, as arras valeriam como indenização “mínima” pela inexecução do contrato, possibilitando o requerimento de indenização suplementar nos termos do art. 419 do CC.
A impossibilidade de cumulação dos institutos, porém, não foi reconhecida apenas no que tange às arras penitenciais. Ao julgar o AgInt no REsp 1831105 (9), a Quarta Turma do STJ também reconheceu a impossibilidade de retenção do valor estabelecido a título de cláusula penal cumulada com arras confirmatórias.
Nesse sentido, também se destaca o julgamento do AgInt no REsp 1789091/DF (10), por meio do qual a Quarta Turma destacou que:
esta Corte Superior perfilha o entendimento de que as arras confirmatórias não se confundem com a prefixação de perdas e danos, tal como ocorre com o instituto das arras penitenciais, visto que servem como garantia do negócio e possuem característica de início de pagamento, razão pela qual não podem ser objeto de retenção na resolução contratual por inadimplemento do comprador.
Como se vê, o STJ tem reconhecido a impossibilidade de cumulação da cláusula penal com as arras, independentemente de serem elas penitenciais ou confirmatórias.
Mais informações sobre o tema podem ser obtidas junto à equipe do Contencioso Cível do VLF Advogados.
Gabrielle Aleluia
Coordenadora da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Mariana Simões
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Sílvia Badaró
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Art. 409. A cláusula penal estipulada conjuntamente com a obrigação, ou em ato posterior, pode referir-se à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou simplesmente à mora.
(2) (8) REsp 1.617.652/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/09/2017, DJe 29/09/2017)
(3) Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
(4) (REsp 1617652/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/09/2017, DJe 29/09/2017)
(5) Art. 420. Se no contrato for estipulado o direito de arrependimento para qualquer das partes, as arras ou sinal terão função unicamente indenizatória. Neste caso, quem as deu perdê-las-á em benefício da outra parte; e quem as recebeu devolvê-las-á, mais o equivalente. Em ambos os casos não haverá direito a indenização suplementar.
(6) Art. 418. Se a parte que deu as arras não executar o contrato, poderá a outra tê-lo por desfeito, retendo-as; se a inexecução for de quem recebeu as arras, poderá quem as deu haver o contrato por desfeito, e exigir sua devolução mais o equivalente, com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, juros e honorários de advogado.
(7) REsp 1.617.652/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/09/2017, DJe 29/09/2017
(8) REsp 1.617.652/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/09/2017, DJe 29/09/2017)
(9) AgInt no REsp 1831105/SP, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 01/03/2021, DJe 03/03/2021
(10) AgInt no REsp 1789091/DF, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 19/08/2019, DJe 23/08/2019