Na disputa pelas ofertas de imóveis residenciais através das plataformas digitais de hospedagem, como o AirBnB, quem levará a melhor: proprietários ou condomínios?
Daniele Persegani
Em decisão proferida no REsp nº 1.884.486, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) reacendeu o debate acerca da legalidade das vedações impostas por condomínios às ofertas de locação por meio das plataformas eletrônicas.
A matéria já havia sido submetida à apreciação da 4ª Turma dessa Corte Superior (1). No caso sob exame, o proprietário adaptou sua unidade autônoma a um hostel (2), objetivando abrigar inquilinos por curtos períodos, causando controvérsia entre os julgadores à época. Alguns Ministros legitimaram aquela oferta por meio de plataformas eletrônicas, por entenderem que tal prática estaria inserida na atual “economia de compartilhamento” (3), plenamente admitida em um regime constitucional fundado na livre iniciativa. Entretanto, a tese vencedora defendeu que a relação contratual ali estabelecida se tratava de contrato atípico de hospedagem (4), conferindo-lhe, pois, a conotação de atividade comercial. Assim, a maioria dos julgadores admitiu a possibilidade de que o condomínio instituísse regras limitadoras àquela contratação, caso a atividade desempenhada se desvirtuasse da destinação residencial imposta pela respectiva convenção.
Recentemente, o STJ voltou a se pronunciar a respeito do assunto (5), por meio de recurso que visava anular a proibição de locações por temporada pela assembleia condominial. Nesta análise, o relator, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, contrariando o precedente da 4ª Turma acima referido, entendeu que atipicidade atribuída a essas contratações, ou até mesmo o meio de divulgação desse gênero locatício (se por intermédio de plataformas digitais, imobiliárias, classificados etc.), seriam irrelevantes para a decisão do litígio. Para o relator, o cerne da lide residia na verificação da natureza da cessão de uso e se esta confrontaria com a destinação atribuída pelo condomínio às suas unidades residenciais.
Deste modo, baseando-se no art. 1.336, IV, do Código Civil (6), o Ministro concluiu que a essência daquela oferta, qual seja, locação por prazo inferior a 90 (noventa) dias, afrontava a destinação exclusivamente residencial das unidades autônomas, prevista na convenção condominial.
Por consequência, a despeito da alegação de violação ao direito constitucional de propriedade pelo titular do imóvel, a 3ª Turma foi unânime ao pronunciar-se:
o direito de propriedade, assegurado constitucionalmente, não é só de quem explora economicamente o seu imóvel, mas sobretudo daquele que faz dele a sua moradia e que nele almeja encontrar, além de um lugar seguro para a sua família, a paz e o sossego necessários para recompor as energias gastas ao longo do dia.
O posicionamento dos julgadores acerca dessa temática, torna perceptível a tendência adotada em prestigiarem o interesse coletivo, desfavorecendo a autonomia privada e, consequentemente, os direitos à liberdade econômica e à contratação. Por outro lado, é evidente a expectativa de que os legisladores se prontifiquem a regulamentar essas novas modalidades contratuais, de modo claro e eficaz conforme os limites da função social do contrato, nos exatos termos do previsto no art. 421 do Código Civil (7).
Não obstante, os precedentes em comento trazem à luz um rico debate doutrinário acerca de temas significativos, sob as mais diversas perspectivas, os quais não poderão subsistir adormecidos ao dissabor da insegurança jurídica à espera de que sejam acomodados ao ordenamento jurídico vigente.
Oportunamente, destaca-se que a sociedade contemporânea se encontra na era dos “negócios disruptivos”, assim denominados pela habilidade peculiar de mudarem o curso natural de processos pré-estabelecidos na sociedade. As ditas inovações, que criam produtos e serviços em substituição a empresas e antigos modelos de relações, foram, inclusive, bastante impulsionadas em virtude do atual período pandêmico. Nada mais natural, portanto, que os operadores do direito se debrucem sobre essas novas relações contratuais, em especial as chamadas atípicas, de modo a integrá-las à sociedade o mais breve possível, evitando que gerem injustiças e desvirtuamento da função social da propriedade e dos contratos.
Tomando-se como exemplo o direito à propriedade, não parece razoável que os órgãos julgadores estabeleçam mecanismos que fomentem a vedação absoluta da locação por temporada, amparados essencialmente na destinação residencial dos imóveis imposta pelas convenções condominiais, sem, contudo, esbarrarem no critério da função social da propriedade (8), pois, segundo preceitua Orlando Gomes: “o exercício dos poderes do proprietário não deveria ser protegido tão-somente para satisfação do seu interesse”. (9)
Analisando-se a questão sob o prisma da necessidade de quem está em busca de uma locação de curta ou curtíssima duração, seja em razão de trabalho, estudo, lazer, entre outras, é possível observar que a localização geográfica dos imóveis poderia contribuir para inverter o paradigma então defendido pela coletividade condominial. Isso porque, imóveis situados à beira-mar, próximos aos campi universitários ou de centros hospitalares não atenderiam às suas respectivas funções sociais se não pudessem ser ocupados por turistas, estudantes, ou pacientes em busca de tratamentos contínuos, mediante contratos de curta duração (ou locação por temporada).
Dessa forma, ao cercearem esse tipo de locação para essa parcela da sociedade, enseja-se o debate de que os julgadores estariam desconsiderando o interesse social imposto pela própria função destinada à propriedade privada e privilegiando o individualismo daqueles que almejam encontrar a paz, o sossego e a segurança de suas famílias no âmbito de seus condomínios.
Ademais, a exploração de imóveis para fins de locação, ainda que em caráter temporário, nem sempre terá o objetivo de desconfigurar a destinação residencial imposta pelas convenções condominiais às suas unidades autônomas.
Nesse contexto, parece razoável inferir que, ao invés de simplesmente proibirem as locações de curta duração, os condomínios direcionem aos ocupantes sob essa modalidade um regramento objetivo, que se ajuste às suas convenções e, consequentemente, à realidade de seus moradores.
Por ora, o STF ainda não foi instado a se manifestar sobre esse tipo de controvérsia, que envolve matéria constitucional. No entanto, quando tão logo o fizer, certamente este tema ganhará contornos mais definitivos.
Nota-se, pois, que a matéria está longe de ser pacificada e dependerá das nuances que cada caso concreto envolver. Em caso de esclarecimentos adicionais sobre o tema, a equipe de consultoria especializada em direito civil e contratos está à disposição para atendê-los.
Daniele Persegani
Advogada da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
(1) REsp nº 1.819.075/RS, julgado pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, publicado em 27/05/2021.
(2) Estabelecimentos destinados à hospedagem por preços mais acessíveis, podendo oferecer serviços semelhantes aos de um hotel, tais como alimentação e lavanderia.
(3) A economia de compartilhamento ou economia compartilhada consiste em novo sistema social e econômico, baseado no compartilhamento de recursos humanos, físicos ou intelectuais, em que o engajamento e a colaboração dos usuários possuem papel fundamental em gerar confiança e aproximar pessoas com interesses mútuos em um ambiente on-line.
(4) Os Contrato atípicos, disciplinados pelo art. 425 do Código Civil, são aqueles que não estão previstos expressamente na legislação, porém são possíveis de serem celebrados entre as partes desde que não infrinjam as normas do Código Civil, a ordem pública, os bons costumes.
(5) REsp nº 1.884.483/PR, julgado pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, publicado em 02/02/2022.
(6) Art. 1.336: “São deveres do condômino: (...) IV - dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes”.
(7) Art. 421: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”.
(8) Art. 5°, inciso XXIII, da Constituição Federal de 1988: “a propriedade atenderá a sua função social”.
(9) GOMES, Orlando, Direitos reais, cit., p. 107.