Entenda o que é a cláusula shotgun (buy or sell) e como ela pode ser utilizada na estruturação societária de seu negócio
Alexandre Bianchini e Pedro Ernesto Rocha
Uma grande questão a ser enfrentada no momento da estruturação societária de negócios é a possibilidade de ocorrerem impasses em relação às decisões sociais. Isso se torna mais premente em sociedades com quadros de sócios compostos por titulares de participações iguais (50/50), que, por serem mais propensas ao empate, demandam cláusulas de solução de impasses societários (comumente chamados de deadlocks).
Imagine-se uma construtora composta por dois sócios fundadores, ambos com participação de 50%. O contrato ou o estatuto social dessa construtora apresenta regra pela qual a sua participação em consórcios para atuação no mercado público depende de aprovação dos sócios em assembleia.
A construtora se vê diante de grandes oportunidades comerciais e sua direção deseja começar a explorar o mercado público por meio de consórcios, e, por isso, convoca os sócios a se manifestarem sobre o assunto. Como cada sócio detém metade do capital votante da construtora, nenhum deles conseguirá, sozinho, aprovar a matéria posta em deliberação, de modo que haverá um impasse caso eles adotem posições divergentes.
Se não houver acordo entre esses sócios prevendo cláusula para resolver o deadlock, a decisão – de explorar comercialmente o mercado público por meio de consórcios – não será tomada.
Essa é uma típica situação que poderia ensejar a aplicação da cláusula denominada shotgun, também conhecida como cláusula de buy or sell, usualmente prevista em acordos de sócios. Por esta cláusula, por exemplo, o sócio que desejasse explorar o mercado público por meio de consórcios (“Sócio A”) poderia notificar o outro sócio (“Sócio B”), apresentando um valuation para a construtora (“Valuation de Referência”), bem como uma oferta de compra ou venda da participação do Sócio B pelo Valuation de Referência proporcional à participação do Sócio B na construtora. Então, o Sócio B poderia optar por vender a sua participação ao Sócio A ou por comprar a participação do Sócio A, aplicando-se em ambos os casos o Valuation de Referência proporcional à quantidade de ações ou quotas a serem alienadas.
Por sua natureza contratual (e atípica, já que não há previsão legal), existem infindáveis possibilidades para estabelecer os procedimentos de uma cláusula shotgun. No entanto, algumas modalidades são mais consolidadas, como, por exemplo (3):
(a) Texas Shootout: nessa modalidade, e seguindo ainda as definições dadas no exemplo da construtora, o Sócio B pode realizar contraproposta objetivando alterar o Valuation de Referência, iniciando então uma espécie de leilão, no qual o sócio que realizar o maior e final lance adquire a totalidade da companhia.
(b) Mexican Shootout (ou Danish Auction): nesse modelo, os sócios devem enviar suas propostas definitivas a um terceiro já definido na cláusula contratual, sendo que aquele que apresentar a melhor oferta ficará com a integralidade da companhia.
Evidentemente, uma vez decidido pelas partes de um contrato pelo estabelecimento de alguma modalidade de cláusula shotgun, o procedimento escolhido deverá observar as nuances de assimetria financeira e de conhecimento do negócio pelas partes envolvidas (4) e deverá ser descrito de maneira clara, para que não existam dúvidas acerca das condições de sua aplicação e dos procedimentos para torná-la efetiva caso seja invocada.
É importante relembrar, ainda, dois preceitos norteadores das relações contratuais e societárias, os quais devem ser considerados na hipótese de aplicação da cláusula shotgun: (i) tanto na conclusão como na execução de um contrato, as partes deverão seguir os princípios da probidade e da boa-fé (5); e (ii) os contratos de sociedades deverão ser pautados na contribuição entre as partes, que se obrigam para partilhar dos resultados de seus negócios (6).
Por tais princípios, há dentro de uma sociedade o que pode ser chamado de dever de lealdade, vinculado ao objetivo final conjunto dos sócios, de modo que a relação de confiança entre as partes tende a ser maior que o de contrato comum (7).
É possível concluir que a legítima aplicação da cláusula shotgun dependerá da análise fática, uma vez que, em tese, sua aplicação não pode se dar em casos nos quais alguma das partes age com abuso de direito, em desrespeito à boa-fé e aos seus deveres societários. É o que ocorreria, por exemplo, se um sócio, sabendo que seu outro sócio está sem liquidez financeira, intencionalmente gerasse um impasse societário para na sequência se valer da cláusula shotgun e assim retirar o segundo sócio da sociedade forçosamente.
Apesar de poderem soar agressivas e arbitrárias, as cláusulas buy or sell, na verdade, costumam oferecer, ao menos, um preço justo ao sócio que vier a ser retirado da sociedade (8). Isso, porque o Valuation de Referência, em tese, é fixado de boa-fé pelo proponente (em nosso exemplo, o Sócio A), tendo em vista que ao inaugurar o procedimento da cláusula o proponente pode acabar comprando a participação do outro sócio (o Sócio B) ou tendo sua própria participação vendida pelo Valuation de Referência que ele mesmo fixou (9).
Nesse sentido, a previsão da cláusula shotgun em acordos societários é um mecanismo que possibilita a resolução de um impasse pela extinção do vínculo societário de maneira eficiente e por um preço que tende a ser justo.
Alexandre Bianchini
Advogado da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Pedro Ernesto Rocha
Coordenador da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) FERREIRA, Mariana Martins-Costa. Buy or Sell e Opções de Compra e Venda para Resolução de Impasse Societário. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 100.
(2) Ibidem, p. 103-104.
(3) EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. v. II – 3. ed. revista e ampliada – Artigos 80 a 137. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 318-319.
(4) BROOKS, Richard; LANDEO, Claudia; SPIER, Kathryn. Trigger Happy or Gun Shy? Dissolving Common-Value Partnerships with Texas Shootouts (March 1, 2009). Harvard Law and Economics Discussion Paper No. 630, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=1372195 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1372195.
(5) Artigo 422 da Lei nº 10.406/02 (“Código Civil”): “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
(6) Artigo 981 do Código Civil: “Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”.
(7) MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: Critérios Para Sua Aplicação. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 312-313; p. 385.
(8) LANDEO, Claudia M.; SPIER, Kathryn E., Shotguns and Deadlocks, 31 Yale J. on Reg. 143 (2014), p. 42. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=2258966.
(9) BROOKS, Richard; LANDEO, Claudia; SPIER, Kathryn. Trigger Happy or Gun Shy? Dissolving Common-Value Partnerships with Texas Shootouts (March 1, 2009). Harvard Law and Economics Discussion Paper No. 630, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=1372195 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1372195.