Conflito de competência entre Tribunais Arbitrais
Aline Piteres e Marina Leal
Em decisão que vem gerando grande repercussão, o Min. Marco Aurélio Belizze determinou – nos autos do CC n. 185.702/DF – que, “em princípio, compet[e] ao Superior Tribunal de Justiça, em atenção à função constitucional que lhe é atribuída no art. 105, I, d, da Carta Magna, conhecer e julgar o conflito de competência estabelecido entre Tribunais Arbitrais”. Assim, suspendeu liminarmente os Procedimentos Arbitrais n. 93/2017 e 110/2018, instaurados perante a Câmara de Arbitragem do Mercado, permitindo a continuidade do Procedimento Arbitral n. 186/2021, instaurado perante a mesma câmara, até o julgamento colegiado da matéria pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) (1).
A decisão tem caráter inédito no STJ (2), sendo esta a primeira vez que este Tribunal é instado a julgar conflito de competência instaurado entre dois Tribunais Arbitrais, vinculados à mesma câmara de arbitragem. No leading case CC 111.230/DF, julgado em 8 de maio de 2013, o STJ já havia reconhecido a possibilidade de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral, diante da natureza jurisdicional da arbitragem (3) e, nos autos do CC 113.260/SP, julgado em 8 de setembro de 2010, definiu-se que o conflito de competência supostamente ocorrido entre duas câmaras de arbitragem diversas deveria ser dirimido no Juízo de primeiro grau por demandar interpretação da cláusula compromissória (4). A existência de conflito entre dois Tribunais Arbitrais, entretanto, nunca havia sido analisada.
O surgimento de procedimentos paralelos, a suscitar conflito de competência, é frequente nas relações jurídicas que envolvem diversas partes ou diversos contratos (5). No caso da decisão ora discutida foram instaurados três procedimentos arbitrais, relacionados à tentativa de responsabilização civil de acionistas controladores de uma companhia, por condutas ilícitas confessadas em acordo de colaboração premiada e de leniência celebrado com o Ministério Público Federal.
Os Procedimentos Arbitrais n. 93/2017 e 110/2018 foram instaurados por acionistas da companhia, enquanto o Procedimento Arbitral n. 186/2021 foi instaurado anos depois pela própria companhia, quando obteve autorização de assembleia geral para tanto. Ocorre que, instados a se manifestar sobre o assunto, tanto o Tribunal Arbitral dos Procedimentos n. 93/2017 e 110/2018, quanto o Tribunal do Procedimento n. 186/2021, reconheceram sua competência para julgar o litígio. Não sendo possível a continuidade de todos os procedimentos, sob pena de decisões contraditórias, que causariam insegurança jurídica e tendo a câmara de arbitragem destes procedimentos declarado que não tinha poderes para julgar a matéria, o STJ foi instado a se manifestar.
Entendeu o Ministro Marco Aurélio Belizze, então, pela competência do STJ, defendendo que:
Não há, nessa medida, como se admitir a subsistência de deliberações jurisdicionais exaradas por Tribunais arbitrais que se excluam mutuamente, como se houvesse um vácuo no ordenamento jurídico, negando-se às partes a definição do órgão (arbitral) efetivamente competente para resolver a causa posta em julgamento, conferindo-lhes instrumento processual eficaz a esse propósito, em manifesto agravamento da insegurança jurídica.
Importa destacar que a decisão proferida ainda não é definitiva. A suspensão dos Procedimentos Arbitrais n. 93/2017 e 110/2018 foi determinada apenas liminarmente, estando a matéria pendente de julgamento colegiado. O reconhecimento inicial da competência do STJ para julgar a matéria, entretanto, já se mostra um marco em relação ao tema e convida a várias discussões doutrinárias.
Qualquer decisão relativa à suspensão, ou até mesmo à consolidação, de procedimentos arbitrais precisa considerar a eficiência desta decisão. Haverá impactos a serem considerados em termos de custos, tempo, confidencialidade (em algumas situações, que envolvem partes diferentes) e até mesmo quanto à formação do Tribunal Arbitral. Em caso de prevalência do Procedimento Arbitral n. 186/2021, por exemplo, questiona-se em que medida os acionistas, autores das demais arbitragens, poderiam ser submetidos a uma decisão proferida por um tribunal arbitral que eles não elegeram. O mesmo vale no sentido inverso. Determinada a prevalência dos outros procedimentos, pode a companhia ser submetida aos efeitos da sentença ali proferida? Todos esses fatores precisam ser considerados no momento de julgar, em vista de um risco de decisões contraditórias em caso de manutenção de todas as arbitragens. A própria competência do STJ é colocada em debate nesse contexto. Questiona-se se o caráter jurisdicional da arbitragem é suficiente para que seja submetido ao poder judiciário um conflito que não advém de nenhum de seus órgãos jurisdicionais.
O tema é de grande relevância prática e a Equipe de Arbitragem do VLF está à disposição em caso de quaisquer dúvidas.
Aline Piteres
Advogada da Equipe de Arbitragem
Marina Leal
Advogada da Equipe de Arbitragem
(1) CC 185.702/DF, Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, 17/03/2022.
(2) Nas palavras do próprio relator, “A questão posta guarda contornos absolutamente inéditos na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (sobretudo após o leading case CC 111.230/DF, julgado em 8.5.2013), cabendo ao relator do presente incidente, que atua em delegação do colegiado da Segunda Seção, a quem compete dar a palavra final sobre o conhecimento e, em sendo o caso, o julgamento do conflito de competência, permitir o processamento do feito e, por meio da adoção de medidas acautelatórias, salvaguardar tal deliberação”.
(3) PROCESSO CIVIL. ARBITRAGEM. NATUREZA JURISDICIONAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA FRENTE A JUÍZO ESTATAL. POSSIBILIDADE. MEDIDA CAUTELAR DE ARROLAMENTO. COMPETÊNCIA. JUÍZO ARBITRAL.
1. A atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem tem natureza jurisdicional, sendo possível a existência de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral. (...)
4. Conflito conhecido para declarar a competência do Tribuna Arbitral.
(CC 111.230/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 08/05/2013, DJe 03/04/2014)
(4) PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. CÂMARAS DE ARBITRAGEM. COMPROMISSO ARBITRAL. INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULA DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA. INCIDENTE A SER DIRIMIDO NO JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU. INCOMPETÊNCIA DO STJ. ART. 105, III, ALÍNEA "D", DA CF. CONFLITO NÃO CONHECIDO.
1. Em se tratando da interpretação de cláusula de compromisso arbitral constante de contrato de compra e venda, o conflito de competência supostamente ocorrido entre câmaras de arbitragem deve ser dirimido no Juízo de primeiro grau, por envolver incidente que não se insere na competência do Superior Tribunal de Justiça, conforme os pressupostos e alcance do art. 105, I, alínea "d", da Constituição Federal.
2. Conflito de competência não conhecido.
(CC 113.260/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 08/09/2010, DJe 07/04/2011)
(5) PAPPAS, Vasilis F. L. ROJAS, Romeo. KESHAVA, Gita. When Consolidation Fails: The Challenges of Parallel Arbitral Proceedings. Global Arbitration Review, 4. ed., nov. 2020.