As principais inovações da Lei 14.193/2021 e os mecanismos para superação do endividamento dos clubes de futebol
Eduardo Metzker Fernandes e Fernanda de Figueiredo Gomes
O Brasil é conhecido no cenário internacional como o “País do Futebol”, o que é evidência de que o esporte é uma paixão nacional, que, por certo, aflora grandes emoções nos corações brasileiros.
Além de entretenimento, com o passar do tempo, o futebol se converteu em uma atividade econômica, que movimenta relevante receita no país. A progressiva profissionalização do esporte, todavia, nem sempre foi acompanhada do aprimoramento de sua estrutura jurídica.
À medida que o esporte foi se popularizando no país, grupos de pessoas se uniram para a prática, formando os chamados clubes de futebol, que se organizavam sob a forma de associações civis, nos termos do art. 53, do Código Civil (1) e, por consequência, não podiam possuir fins lucrativos.
A limitação imposta pelo modelo jurídico escolhido fez com que as associações fossem conduzidas, muitas vezes, por voluntários, sem a necessária qualificação técnica para o exercício da atividade. Em outras palavras, em que pese o alto volume de recursos movimentado, os clubes, em sua maioria, eram geridos de forma amadora.
Em uma tentativa de profissionalizar os clubes de futebol e regulamentar essa atividade, em 6 de julho de 1993 foi promulgada a Lei 8.672/93, a chamada “Lei Zico”, que facultava aos clubes a possibilidade de se converterem em sociedade com fins lucrativos (“sociedade comercial”). Contudo, poucos foram os que aderiram à proposta.
Na sequência, em 24 de março de 1998, foi promulgada a Lei 9.615, denominada de “Lei Pelé”, que visava compelir os clubes de futebol a se converterem em sociedades com fins lucrativos. A medida, contudo, desagradou muito o setor, especialmente diante das desvantagens tributárias representadas pela mudança e acabou sendo revogada pouco tempo depois.
Nesse contexto, a realidade é que as mudanças legislativas até então promovidas pelo Estado não causaram grande alteração neste setor, haja vista que poucos foram os clubes que se dispuseram a converter-se em sociedades com fins lucrativos e, consequentemente, arcar com a respectiva carga tributária.
O que se viu, então, foi que, sem um incentivo consistente à completa profissionalização dos clubes, eles acumularam dívidas extremamente elevadas. Atualmente, os vinte times com maiores dívidas possuem um débito de assombrosos R$ 10.200.000.000,00 (dez bilhões e duzentos milhões de reais) (2).
Os meios para a superação da crise financeira, no entanto, não são de fácil acesso ao modelo jurídico que predomina no mercado, a associação civil. Diante da ausência de um sistema estruturado e profissional, a missão de atrair investidores dispostos a investir no esporte torna-se difícil. Além disso, havia incerteza sobre a possibilidade de os clubes de futebol utilizarem um instrumento jurídico essencial para sociedades que atravessam períodos de instabilidade financeira e endividamento: a recuperação judicial.
Nesse contexto de incerteza e precarização do setor futebolístico, foi elaborada a Lei 14.193/2021 (3), que instituiu a figura da Sociedade Anônima de Futebol (“SAF”) e trouxe outros instrumentos para o tratamento do endividamento dos clubes de futebol.
Nos termos do art. 2º, da referida Lei, a SAF pode ser constituída: i) pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF; ii) pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado ao futebol; ou iii) pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica de fundo de investimento.
Nesse contexto, é certo que, com a criação da SAF, o clube, assim entendido como a associação sem fins lucrativos, pode deixar de existir ou coexistir com a sociedade anônima. Em todo caso, nos termos do art. 9º, a responsabilidade da SAF pelas dívidas constituídas pelo clube limita-se às atividades específicas do seu objeto social e às que lhe foram transferidas e o seu pagamento está restrito aos percentuais dispostos no art. 10º (20% das receitas correntes mensais auferidas pela SAF e 50% dos dividendos da Associação).
A Lei contemplou modelo inovador de gerenciamento do endividamento, denominado Regime Centralizado de Execução (“RCE”), que se destina especificamente aos clubes de futebol.
Nos termos do art. 14 da Lei 14.193/21, o RCE consiste em uma concentração no Juízo centralizador das execuções, das receitas e valores arrecadados pela SAF para que eles sejam distribuídos aos credores em concurso e de forma ordenada. Assim como no regime da Recuperação Judicial, deve ser apresentado um plano, com respeito às preferências estipuladas em lei. O mecanismo do RCE ainda prevê a possibilidade de haver negociação coletiva na elaboração do plano de pagamento.
Com a concessão do RCE pelo Poder Judiciário, as dívidas existentes podem ser pagas em até 10 (dez) anos, sendo que a Associação deve pagar pelo menos 60% do valor total da dívida até o fim do sexto ano para ter direito à prorrogação por mais 4 (quatro) anos, período em que os 40% remanescentes devem ser totalmente pagos.
A Lei, entretanto, não dispõe integralmente sobre o funcionamento do regime, relegando ao Poder Judiciário, por ato de seus Tribunais ou, em sua ausência, do Tribunal Superior, a sua regulamentação. Ocorre que até este momento não se tem notícia de que o RCE tenha sido regulamentado, o que não garante aos clubes a desejável previsibilidade jurídica nesse momento de reestruturação das dívidas.
Apesar da ausência de regulamentação, o Clube de Regatas Vasco da Gama e, mais recentemente, o Cruzeiro Esporte Clube já estão se utilizando do RCE, de forma que começaremos a verificar qual será a interpretação dada pela Jurisprudência diante das lacunas legislativas.
Considerando que a SAF possui característica de sociedade empresária anônima, não há dúvidas de que se submete aos efeitos da Lei 11.101/05 (4). Contudo, a Lei 14.193/2021, em seu art. 13, II e 25, também cuidou de estipular expressamente a legitimidade dos clubes, enquanto sociedades civis sem fins lucrativos, para recorrer à Recuperação Judicial e Extrajudicial.
Essas são, em suma, as principais inovações trazidas pela Lei 14.193/2021.
Em relação às associações civis que não exercem atividade futebolística, a possibilidade de recuperação judicial ainda é matéria controversa no Brasil. O art. 1º, da Lei 11.101/05 determina que a lei se aplica apenas ao empresário e à sociedade empresária, conceito no qual não se enquadraria a associação civil. Contudo, esta também não foi expressamente excluída no art. 2º, do mesmo diploma legal, de modo que permanece a dúvida.
Tome-se como exemplo a Recuperação Judicial da associação civil Figueirense Futebol Clube, que, em um primeiro momento, foi indeferida por ilegitimidade passiva pelo Juízo de primeiro grau. A decisão foi reformada pelo TJSC (5), sob o fundamento de que as associações não foram expressamente excluídas da Lei 11.101/05, bem como por considerar que, embora não possuam fins lucrativos, os clubes de futebol exercem atividade econômica organizada, elemento típico de empresa.
Apesar da decisão favorável de segunda instância, o fato de a Recuperação Judicial ter sido indeferida pelo Juízo de primeiro grau deixa evidente que se tratava de matéria ainda controversa no âmbito da Jurisprudência.
Contudo, com a promulgação da Lei 14.193/2021, parece ter restado superado, ao menos no que concerne aos clubes de futebol, a dúvida acerca da possibilidade de Recuperação Judicial e Extrajudicial de associações. A Recuperação apresenta a vantagem de ser um regime já extremamente conhecido, com legislação abrangente e entendimento jurisprudencial consolidado. Ademais, o deságio e as condições de pagamento dependem apenas da aprovação da Assembleia Geral de Credores, isto é, não é necessária a anuência individualizada dos credores.
Por outro lado, nos termos da Lei 11.101/05, há possibilidade de convolação da Recuperação Judicial em falência, na hipótese de rejeição do plano. A Lei 14.193/2021, contudo, foi silente sobre a possibilidade de decretação de falência dos clubes de futebol, de modo que ainda há dúvidas sobre o cabimento deste regime.
Apesar das críticas e das lacunas, a Lei 14.193/2021, aparentemente, representa um avanço na direção correta, na medida em que considera a realidade dos clubes de futebol brasileiros e a necessidade de que seja superada a crise financeira generalizada que atinge o setor.
Eduardo Metzker Fernandes
Coordenador da Equipe de Contencioso Cível Estratégico do VLF Advogados
Fernanda de Figueiredo Gomes
Advogada da Equipe de Contencioso Cível Estratégico do VLF Advogados
(1) BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil (CC). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 17 abr. 2022.
(2) Corinthians pior do que Botafogo, Atlético-MG supera Cruzeiro: o ranking das dívidas de mais de R$ 10 bilhões dos clubes brasileiros. ESPN, 3 mai. 2021. Disponível em: https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/8575907/corinthians-pior-botafogo-atletico-mg-supera-cruzeiro-ranking-dividas-mais-r-10-bilhoes-clubes-brasileiros. Acesso em: 17 abr. 2022.
(3) BRASIL. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14193.htm. Acesso em: 17 abr. 2022.
(4) BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em: 17 abr. 2022.
(5) TJSC. Apelação Cível 5024222-97.2021.8.24.0023/SC. Rel. Des. Torres Marques. Julgamento em 18/03/2021 Brasília, 2021.