Notas sobre a aferição do elemento subjetivo para responsabilização por litigância de má-fé
Ana Paula Dalpizzol
A litigância de má-fé, atualmente positivada nos artigos 79 a 81 do Código de Processo Civil de 2015 (“CPC”) objetiva, precipuamente, coibir ações que configurem abuso do direito constitucional de ação (1), do qual decorrem também os direitos ao contraditório e à ampla defesa, dentre outros.
O CPC vigente trouxe alteração relevante para o instituto em relação ao diploma de 1973, aumentando consideravelmente o escopo da multa, que antes não podia ser aplicada em percentual maior do que um por cento sobre o valor da causa e, hoje, deve variar de um até dez por cento sobre a referida quantia. A notoriedade conferida pelo novo Código à responsabilização pela litigância de má-fé clama atenção especial à boa-fé processual e aos ditames do devido processo legal, não só pelas partes e seus advogados, como também por terceiros interessados e outros sujeitos processuais, em toda e qualquer demanda submetida ao rito processual civil.
O legislador pátrio cuidou de elencar, no rol do artigo 80 do CPC (2), as condutas que se enquadram como litigância de má-fé, além de trazer outras disposições que permitem a aplicação da multa por litigância de má-fé, como é o caso do art. 142 (3). Deixou, contudo, de conceituar o termo, que, apesar disso, é bem autoexplicativo. Isso porque, “litigar” significa buscar em juízo contencioso a resolução do Estado-juiz para uma questão controvertida, enquanto “má-fé” indica intenção maliciosa, ardilosa.
Exatamente por indicar uma “intenção”, a jurisprudência pátria tem entendido, de forma pacífica, que a condenação por litigância de má-fé pressupõe a constatação do elemento subjetivo na conduta a ser repreendida. Isso é, deve ser demonstrado, de forma irrefutável, que o litigante agiu com dolo ou culpa grave, com a intenção deliberada de causar dano ao trâmite natural do processo, sem observar seu dever de lealdade processual.
Acontece que a linha entre exercício do direito de ação e a litigância de má-fé pode ser, por vezes, extremamente tênue. A exigência do elemento subjetivo para responsabilização é, de um lado, uma garantia às partes diante da atuação punitiva do próprio Estado-juiz e, de outro, um entrave à correção de condutas que, ainda que não praticadas com dolo ou culpa, são prejudiciais à marcha processual e, consequentemente, às partes, aos advogados, ao próprio magistrado e, inclusive, às finanças públicas, que subsidiam a máquina jurisdicional.
Pode-se pensar, por exemplo, na conduta descrita pelo artigo 80, inciso III, do Código de Processo Civil: “considera-se litigante de má-fé aquele que usar do processo para conseguir objetivo ilegal”. Em uma interpretação mais ampla do ordenamento jurídico brasileiro, tem-se que o artigo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“LINDB”) determina que “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”. Nesse cenário, não seria questionável exigir a demonstração do elemento subjetivo para a responsabilização por litigância de má-fé daquele que persegue objetivo ilegal no processo?
Diante desse questionamento, há que se considerar que nem sempre a intenção do litigante é clara. O “objetivo ilegal” mencionado pelo inciso III pode estar consubstanciado em pedido que não demonstra explicitamente a finalidade ilegal, ou seja, há um propósito “oculto” no pedido. Nesse cenário, a comprovação do elemento subjetivo é relevante como garantia à parte que se acusa estar agindo de má-fé.
Veja-se, também, a conduta contida no art. 80, inciso VII, do Código em apreço, referente à interposição de recurso com intuito manifestamente protelatório. A demonstração do elemento subjetivo da conduta, no caso deste inciso, mostra-se verdadeiramente como uma proteção ao litigante de boa-fé e deve decorrer de uma interpretação do contexto em que o processo se insere, a fim de não suprimir o direito da parte a uma prestação jurisdicional completa e adequada. Nas palavras de Cândido Dinamarco: “as situações concretas devem ser interpretadas com sensata razoabilidade, de modo a evitar a repressão a condutas que somente revelem astúcia ou espírito de luta, sem transbordar para o campo do excesso. (...) Como todo combate, reprimem-se os golpes baixos, mas sem golpes não há combate” (4).
A atuação em juízo decorre sempre, em primeiro lugar, do exercício regular do direito de ação. O abuso de direito, que legitima a responsabilização por litigância de má-fé, é conceituado na doutrina civil como “um ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito” (5), e comumente está atrelado à responsabilização objetiva (que independe da demonstração de dolo ou culpa). Como visto, porém, a demonstração do elemento subjetivo para responsabilização pela litigância de má-fé é uma garantia aos “bons combatentes” e deve ser defendida.
A responsabilidade objetiva no caso da litigância de má-fé poderia implicar em uma série de atos passíveis de serem interpretados como de má-fé, até porque algumas das hipóteses trazidas pelo artigo 80 do CPC são bastante genéricas. Além do mais, os julgadores, neste cenário, restariam imbuídos de ainda mais poderes na condução do processo, o que poderia comprometer a cooperação processual. De toda sorte, é evidentemente cabível pensarmos em ampliar o espectro da responsabilização por litigância de má-fé, em prol de conferir ainda mais higidez ao desenrolar processual.
O que se conclui, diante de tais considerações, é que é necessário cautela e estrita observância à boa-fé processual na condução dos feitos. A responsabilização por litigância de má-fé pode causar grandes prejuízos financeiros, até mesmo porque a penalidade pode ser cumulada com a multa por ato atentatório à dignidade da justiça, de até vinte por cento do valor da causa (6). Por isso, o papel do advogado na análise estratégica caso a caso é de extrema importância.
Se interessou pelo assunto? Mais informações podem ser obtidas junto à equipe do Contencioso Cível do VLF Advogados.
Ana Paula Dalpizzol
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Art. 5º, XXXV, Constituição Federal.
(2) Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; II - alterar a verdade dos fatos; III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI - provocar incidente manifestamente infundado; VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
(3) Art. 142. Convencendo-se, pelas circunstâncias, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim vedado por lei, o juiz proferirá decisão que impeça os objetivos das partes, aplicando, de ofício, as penalidades da litigância de má-fé.
(4) Instituições de Direito Processual Civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 268.
(5) FRANÇA, Rubens Limongi. Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. v. 2, p. 45.
(6) Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo: (...) § 2º A violação ao disposto nos incisos IV e VI constitui ato atentatório à dignidade da justiça, devendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa de até vinte por cento do valor da causa, de acordo com a gravidade da conduta.