O entendimento do STJ sobre a compensação de dívida prescrita
Walter Neto
O instituto da compensação está previsto no artigo 368 do Código Civil (1) e estabelece que “se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem”.
A compensação no Direito Civil, portanto, compreende um modo indireto de extinção das obrigações entre pessoas que se tornam credoras e devedoras uma da outra ao mesmo tempo.
Existem três tipos de compensação no Direito Civil: i) convencional; ii) judicial; e iii) legal. A compensação convencional ocorre quando os credores decidem extinguir o crédito que possuíam em relação ao outro. A judicial se caracteriza mediante um pedido feito em juízo e a legal se opera automaticamente, independentemente de qualquer ação dos contratantes.
Ao contrário da extinção de uma obrigação pelo seu cumprimento, na compensação a coexistência das dívidas é suficiente para extinguir, indiretamente, as obrigações existentes entre as partes.
O artigo 369 do Código Civil (2) elenca os requisitos necessários para a realização da compensação: “a compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis”.
Há uma breve discussão conceitual na doutrina a respeito da expressão “vencidas”, escolhida pelo legislador para definir um dos requisitos da compensação.
Os críticos da expressão defendem que deveria constar no seu lugar o termo “exigíveis”, para afastar a possibilidade de se realizar a compensação de dívidas prescritas.
Ou seja, para essa parte da doutrina, a intenção do legislador, ainda que não tenha escolhido a melhor expressão, foi a de vedar a compensação de dívida prescrita. E, para essa corrente, a utilização da expressão dívidas “exigíveis” não deixaria margem à dúvida em relação à essa impossibilidade.
De acordo com as lições de Jorge Cesa Ferreira da Silva “não sendo o crédito exigível pelo pagamento, não pode tornar-se exigível pela compensação” (3).
No entanto, para a corrente contrária, a expressão “vencidas” é adequada para ser utilizada como requisito da compensação. De acordo com esse entendimento, a legislação não impede a compensação de dívida prescrita.
Para entender essa peculiaridade, é importante lembrar que a prescrição extingue apenas a exigibilidade da dívida, e não sua existência. Por essa razão, se no momento da coexistência das dívidas ainda não há prescrição, a compensação se opera exatamente neste momento, podendo ser suscitada posteriormente.
Explica-se: quando a compensação é suscitada em juízo, a sentença que a reconhece é considerada declaratória extintiva da obrigação, retroagindo à data de coexistência dos créditos.
Ou seja, para que as dívidas sejam compensadas, basta que elas sejam líquidas, vencidas e de coisas fungíveis no exato momento da coexistência delas, independente do decurso de prazo transcorrido para o pleito do seu reconhecimento. A sentença retroagirá à data da exata coexistência das dívidas, operando-se a compensação.
Como fundamentação, os defensores dessa corrente, a exemplo de Caio Mário da Silva, explicam que a prescrição somente obsta a compensação se ela for anterior ao momento da coexistência das dívidas. Se a prescrição de uma das dívidas se operou após a coexistência, essa circunstância não constitui empecilho à compensação dos débitos.
Com a retroatividade da data da compensação, surgiu na jurisprudência a discussão sobre a possibilidade de “compensar dívida prescrita”. Mas é importante ressaltar: o entrave era sobre o reconhecimento da compensação após o decurso do prazo prescricional, e não se poderia compensar automaticamente dívidas quando uma delas estaria prescrita no momento da coexistência.
Destaca-se a expressão “automaticamente”, pois não há óbice no pagamento ou na compensação voluntária de uma dívida prescrita, até porque a prescrição não extingue a dívida, apenas a torna inexequível. Com isso, nada impede que a parte que se beneficie da prescrição realize, espontaneamente, a compensação.
Dirimindo a controvérsia que se instaurou nos tribunais estaduais, em 24 de fevereiro de 2022, foi publicado o acórdão do REsp 1.969.468-SP, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, por meio do qual o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) firmou a tese sobre a possibilidade de reconhecer a compensação após o decurso do prazo prescricional se a dívida ainda não estava prescrita à época da coexistência.
No caso analisado pelo STJ, a parte Recorrida defendia o descabimento da compensação em razão da prescrição da dívida, ao passo que a Recorrente suscitava a necessidade da realização de uma prova pericial contábil para certificar se houve quitação do débito com a compensação.
O julgamento do Resp 1.969.468-SP, então, revelou o entendimento do STJ de que a prescrição não obsta o reconhecimento da compensação de forma voluntária. Assim, na medida em que a Recorrida realizou a compensação voluntariamente, a prescrição não obsta sua validade, considerando o efeito ex tunc da sua declaração, e sua caracterização automática.
Conforme destacou a Ministra Relatora (4):
As partes controvertem, porém, acerca da extensão da compensação. Ou seja, se houve quitação integral do débito ou se os recorrentes (executados/embargantes) ainda são devedores da recorrida (exequente/embargada). Por essa razão, os ora recorrentes postularam a produção de prova pericial, a qual, consoante supra anotado, foi indeferida pelo Tribunal de origem com base na ocorrência de prescrição.
Nada obstante, de acordo com os delineamentos traçados, a prescrição não obsta a que a parte que dela se aproveita – no particular, a recorrida –, proceda à compensação. Assim, tendo a recorrida realizado a compensação de forma voluntária, a prescrição não constitui obstáculo à declaração da compensação já realizada e que se proceda ao exame, mediante perícia técnica, a respeito da sua extensão.
Desse modo, afastado o fundamento que serviu de base para a rejeição da perícia, impõe-se o reconhecimento da ocorrência de cerceamento de defesa, com o retorno dos autos à origem, a fim de verificar se a amortização operada pela recorrida extinguiu integralmente o débito oriundo do contrato de financiamento imobiliário ou se ainda há montante a ser saldado pelos recorrentes.
Na fundamentação do acórdão, ainda foi utilizada a esclarecedora doutrina de Carlos Mário, que vale replicar:
Dentro da variedade de opiniões, o que deve prevalecer é a conjugação do requisito da exigibilidade com o efeito automático da compensação. Assim, se a prescrição se completou antes da coexistência das dívidas, aquele a quem ela beneficia pode opor-se à compensação, sob o fundamento de que a prescrição extingue a pretensão, e, portanto, falta o requisito da exigibilidade para que aquela se efetue. Mas se os dois créditos coexistiram, antes de escoar-se o prazo prescricional, operou a compensação, ipso iure, e perimiu as obrigações; a prescrição que venha completar-se ulteriormente não mais atua sobre os débitos desaparecidos (5).
Com isso, firmou-se a tese no sentido de que a prescrição somente obsta a compensação se ela for anterior ao momento da coexistência das dívidas. E como a compensação é um direito potestativo extintivo, cujo reconhecimento retroage à data da coexistência das dívidas, não há óbice em reconhecer esse direito após o decurso do prazo prescricional.
Walter Neto
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Art. 368, do Código Civil: Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.
(2) Art. 369, do Código Civil: A compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis.
(3) SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Adimplemento e Extinção das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 481.
(4) REsp 1.969.468-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgamento em 22/02/2022, DJe 24/02/2022.
(5) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações – v. II. 28 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.247.