A necessidade de atenção ao artigo 473, § único do Código Civil, no momento da resilição contratual
Arthur Batista e Fernanda Galvão
Uma operadora de planos de saúde (“Operadora”) celebrou contrato de prestação de serviços com duas empresas de telemarketing (“Empresas”). Para execução das atividades do contrato, as Empresas realizaram alguns investimentos relativamente vultosos, reformando e expandindo suas estruturas físicas, bem como aumentando o número de seus empregados. No entanto, antes da data-término acordada para a relação contratual, a Operadora denunciou imotivadamente o contrato, resilindo unilateralmente a relação com as Empresas.
De acordo com o artigo 473, existe a possibilidade de resilição unilateral do contrato mediante denúncia realizada por meio de notificação de uma parte a outra. Já seu § único (1) prevê que, caso haja investimento considerável para a execução do contrato, a denúncia unilateral deverá observar um prazo razoável para a recuperação dos investimentos realizados pela parte contratante.
Dessa forma, é importante verificar que é lícito a qualquer uma das partes, observando-se o disposto no contrato, resilir um acordo celebrado, mediante notificação em que se denuncia o contrato. No entanto, é fundamental verificar se, para o atendimento das premissas contratuais, houve investimentos consideráveis para cumprimento das obrigações previstas em contrato pela parte que não deseja o encerramento da relação.
Caso contrário, conforme lição de Gustavo Tapedino, Carlos Nelson Konder e Paula Greco Bandeira (2), a denúncia do contrato pode ser injusta, considerando, além de descumprimento do parágrafo único do artigo 473 do Código Civil, ainda haver quebra do princípio da boa-fé, uma vez que não houve observância de prazo compatível com a natureza e vulto dos investimentos.
Nesse mesmo sentido, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (3), sustentam que, o parágrafo único do artigo 473 do Código Civil tem por objetivo suspender a eficácia da resilição unilateral em hipóteses que uma das partes tenha realizado investimentos substanciais.
Na prática, observando o artigo 473 e seu parágrafo único do Código Civil, verifica-se que o contrato celebrado em condições semelhantes às vistas aqui, deverá permanecer “irradiando sua eficácia plena até o escoamento de tal prazo. (...) O eventual descumprimento da obrigação comporta os remédios previstos no ordenamento jurídico para a satisfação dos interesses do credor (por exemplo, execução específica, com todos os meios de apoio que lhe são próprios, ou mesmo perdas e danos)”, como bem define Paula Forgioni (4).
O artigo acima citado, bem como o entendimento apontado, além de presente na maioria da doutrina do direito relacionada a contratos, embasou o voto da Ministra Relatora, Nancy Andrighi, para apontar o abuso de direito por parte da Operadora.
O juízo originário havia negado o pedido das Empresas, entendendo que a Operadora respeitou o prazo contratualmente estabelecido e que, nesse sentido, o que fora convencionado entre as partes havia sido respeitado.
No entanto, para cumprimento do contrato celebrado, as Empresas investiram valores consideráveis para garantir excelência na prestação de serviços contratados pela Operadora, sendo ainda que, o referido acordo era a principal fonte de receita para elas.
Segundo a Ministra Relatora, não havendo sido respeitado o prazo razoável, considera-se que a denúncia do contrato é abusiva, devendo ser suspendida até que haja recuperação do capital aplicado.
Ainda de acordo com o voto proferido pela Relatora, o REsp 1.555.202 (5) de responsabilidade da Quarta Turma do STJ, apresenta relevante precedente de aplicação do instituto do abuso de direito aplicado, previsto no art. 187 do Código Civil (6), a casos envolvendo contratos nos quais o distrato causa dano injusto a uma das partes.
No acordão definiu-se que “a mera existência de cláusula autorizativa de resilição não justifica o rompimento unilateral e imotivado de um contrato que esteja sendo cumprido a contento, principalmente se a parte que não deseja a resilição fez altos investimentos para executar suas obrigações”.
A decisão ainda determinou que a Operadora deverá indenizar as Empresas em razão da denúncia prematura do contrato, cujo valor deverá ser suficiente para satisfazer os custos realizados pelas Empresas para atendimento do contrato, assim como ensina Cesar Santolim (7). Essa quantia terá por finalidade garantir a recuperação dos investimentos realizados pelas partes denunciadas.
Nota-se que esse trecho da decisão é aplicação prática do previsto nos artigos 421 do Código Civil: a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Ou seja, a autonomia da vontade das partes no Código Civil encontra importantes barreiras impostas pelo legislador, qual seja, a função social do contrato.
Significa dizer que os contratos “são instrumentos, por excelência de circulação de riquezas, sendo que as trocas demandam utilidade e justiça, censurando o abuso da liberdade contratual” (8). Dessa forma, é preciso que os contratos além de satisfazer os interesses das partes contratantes, também cumpram o seu papel na sociedade, pois sem dúvida alguma, eles repercutem na própria economia.
Exatamente por essa razão que o conteúdo dos contratos está sujeito a um determinado controle, exatamente como ocorreu no caso em análise. Apesar de haver previsão expressa de resilição unilateral pela Operadora, se tal disposição contratual criou injustiças às Empresas, coube ao Poder Judiciário adequar o conteúdo do contrato para que a sua função social fosse alcançada fixando indenização em favor das Empresas prejudicadas pela denúncia prematura do contrato.
A decisão também entendeu que a atitude da Operadora viola o princípio da boa-fé objetiva previsto no art. 422 do Código Civil, que determina que os contratantes devem observar não só na execução, mas na conclusão dos contratos a boa-fé.
O princípio da boa-fé objetiva impõe às partes de uma relação a adoção de postura que guarde conformidade com os padrões sociais de ética, correção e transparência, a respeitar a legítima expectativa depositada nessa relação. Nesse contexto, o princípio da boa-fé objetiva cria deveres anexos à obrigação principal, os quais devem ser também respeitados por ambas as partes contratantes. (9)
Dessa forma, no caso apresentado, o direito à resilição unilateral, embora seja legal e previsto no ordenamento jurídico, flagrantemente lesou os contratantes que acreditaram na consistência da relação jurídica a tal ponto de efetuar significantes investimentos para atendimento do acordo.
Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (10), uma das funções do princípio da boa-fé objetiva é a de frear o exercício de condutas formalmente lícitas, mas materialmente antijurídicas, quando ultrapassem os limites éticos do sistema.
Diante disso, é fundamental a atenção às condições das partes antes da contratação e à eventual necessidade de investimentos para atendimento ao contrato. Esse cuidado prévio poderá diminuir os riscos relacionados, entre outros, a possíveis indenizações quanto à denúncia prematura do contrato, caso seja do interesse da contratante.
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Arthur Batista
Advogado da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
Fernanda Galvão
Sócia-executiva e Coordenadora da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
(1) Art. 473 do Código Civil. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte.
Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.
(2) TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos do Direito Civil – Contratos. v. 3. São Paulo: Forense, 2022.
(3) FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Contratos. v.4. Salvador: JusPodivm, 2022.
(4) FORGIONI, Paula Andrea. Contratos de Distribuição. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
(5) STJ. Recurso Especial nº 1.555.202 – SP (2014/0345696-6). Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1562171&num_registro=201403456966&data=20170316&formato=PDF. Acesso em: 25 maio 2022.
(6) Art. 187 do Código Civil. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
(7) SANTOLIM, Cesar. A proteça?o dos investimentos especi?ficos na resiliça?o unilateral do contrato e o risco moral: uma ana?lise do artigo 473, para?grafo u?nico, do Co?digo Civil. Revista Si?ntese: direito empresarial, n. 35, p. 9-13, nov./dez. 2013.
(8) ROSENVALD, Nelson. Código Civil comentado. Coordenador: Ministro Cesar Peluso. 4. ed. rev. atual. São Paulo: Manole, 2021.
(9) Acórdão nº 1168030/TJDFT.
(10) FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Contratos. v. 4. 3. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2013.