Entenda como o voto plural pode ser utilizado para organizar a estrutura acionária de uma companhia
Alexandre Bianchini e Pedro Ernesto Rocha
Dentre as questões centrais que relacionam a atividade empresarial e o direito societário encontram-se aquelas atinentes à estrutura acionária de uma sociedade. Nesse sentido, desde a criação e principalmente durante o desenvolvimento dos negócios podem ocorrer situações de alteração – ou de necessidade de alteração – da composição acionária e do controle da sociedade (1).
Considere uma startup fundada por um grupo de amigos, que, após algumas rodadas de captação e investimentos de fundos de venture capital, deixou de deter os 100% de participação acionária inicial para possuir apenas 45% da sociedade original.
O cenário acima é recorrente durante o crescimento de várias companhias, no entanto, nem sempre é algo desejado por seus fundadores. Com a promulgação da Lei nº 14.195/21 (“Lei do Ambiente de Negócios”) foi revogado o §2º do artigo 110 da Lei nº 6.404/76 (“LSA”) e incluído o artigo 110-A, trazendo ao grupo de amigos supramencionado a possibilidade de, com o objetivo de manter o controle político da companhia, estabelecer o voto plural em seu contexto societário.
Até o advento da Lei do Ambiente de Negócios, imperava no Brasil o paradigma conhecido como “one share, one vote”, por meio do qual o voto plural era explicitamente vedado na LSA e cada ação ordinária deveria, necessariamente, corresponder a um voto. Nesse contexto, os poderes políticos dentro da sociedade eram guiados pela proporção financeira dos acionistas ordinários.
Agora, o voto plural pode ser atribuído a alguma classe de ação ordinária, o que quebra esse paradigma, pois faz com que a manifestação dos titulares dessas ações represente até dez votos por ação nas deliberações sociais, ao passo que a manifestação do acionista titular da ação ordinária “comum” permanece no sistema “one share, one vote”.
Originalmente, o mecanismo do voto plural foi desenvolvido para permitir a manutenção do controle das sociedades estatais durante o período de reestruturação econômica após a Primeira Guerra Mundial. Ao longo do tempo, a utilização do mecanismo acabou por originar situações generalizadas de abuso do poder de controle das companhias, passando a ser vedado, então, em algumas legislações ao redor do mundo (2). No entanto, continuou permitido nos Estados Unidos, de modo que ao decidir captar recursos, várias companhias, inclusive brasileiras, optaram por realizar por lá a abertura de seu capital.
A entrada do voto plural no mercado brasileiro (3) deu-se no contexto do crescimento da indústria de venture capital e private equity, por meio do qual os fundos de investimentos multiplicaram sua presença na estrutura de governança das sociedades investidas (4). Assim, o mecanismo em questão passou a ser uma demanda dos fundadores de empreendimentos que desejavam obter financiamento sem renunciar ao controle da sua companhia.
Nesse sentido, voltando ao exemplo do início, imaginando-se que o grupo que originalmente detinha 100% de participação passaria a possuir apenas 45%, a sociedade poderia ser estruturada de modo que as ações dos membros do grupo seriam de “Classe A”, com direito a dez votos por ação, enquanto as ações dos investidores seriam de “Classe B”, com direito a um voto por ação. Assim, o grupo fundador conseguiria captar recursos, sem renunciar ao controle da sociedade (5).
A estrutura acionária baseada no voto plural pode favorecer a estabilidade da administração da sociedade, uma vez que o grupo de controle, nesses casos, pode executar suas estratégias de longo prazo sem a preocupação de agradar os grupos com menor poder político sobre a sociedade.
Outro ponto positivo é que os dados contábeis elaborados pelas sociedades com classes distintas de voto tendem a ter melhor credibilidade e, ainda, terem uma previsibilidade maior (6).
Por outro lado, o tratamento dado ao voto plural pelo legislador vem sendo alvo de críticas (7), considerando (i) o potencial conflito de agência (8) entre os acionistas controladores e os demais grupos de acionistas de uma sociedade e (ii) as várias limitações que, por imposição da lei brasileira, deverão ser observadas pela sociedade ao criar classes distintas de ações.
O conflito de agência existiria na medida em que o grupo de controle poderia, em tese, passar a privilegiar seus próprios interesses, e/ou, por ter uma participação acionária menor, passar a ter maior apetite por risco (9).
Já dentre as limitações impostas pela Lei do Ambiente de Negócio, destacam-se: (i) a quantidade máxima de dez votos por ação (artigo 110-A da LSA); (ii) a vedação ao uso por companhia que já possua valores mobiliários em negociação (artigo 110-A, II, da LSA); (iii) a existência de prazo de vigência de sete anos (artigo 110-A, § 7º da LSA); e (iv) a restrição ao uso do voto plural nas deliberações sociais listadas no § 12 do artigo 110-A da LSA, a saber a deliberação sobre remuneração de administradores e sobre transações com partes relacionadas consideradas relevantes pela CVM (10). De forma geral, o sentimento dos operadores jurídicos é de que a aplicação do voto plural ficou engessada, inclusive, tornando-se obstáculo a demandas legítimas de sociedades (11).
Fato é que o voto plural é um instrumento que pode se adequar a vários casos concretos, dividindo com as ações preferenciais sem direito a voto o papel de instrumento de balanceamento entre poder de controle e capital investido. Assim, o uso do voto plural deve ser sugerido após a análise específica da situação, considerando-se a pretensão dos envolvidos acerca da governança da companhia e da percepção de ganhos por seus investidores.
Mais informações podem ser obtidas com a equipe de Direito Societário do VLF Advogados.
Alexandre Bianchini
Advogado da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Pedro Ernesto Rocha
Coordenador da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) O poder de controle é caracterizado pelos requisitos legais, nos termos do artigo 116 da LSA, de: (i) titularidade de “direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia geral”; (ii) “poder de eleger a maioria dos administradores da companhia”; e (iii) usar “definitivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia”.
(2) CARVALHOSA, Modesto. Voto plural: evolução ou retrocesso? In: Diálogos com Coutinho de Abreu. Coimbra: Almedina, 2020, p. 703.
(3) No Brasil, a Lei nº 3.150 de 4 de novembro de 1882, em seu artigo 15, §6º trazia disposição de que os estatutos sociais determinaram “(...) o número de votos que compete a cada acionista na razão do número das acções que possuir.” Apenas com o Decreto-lei nº 2.627/1940 o voto plural foi explicitamente vedado, o que foi mantido pela LSA até a Lei do Ambiente de Negócios. Sobre o tema, cf. REGO, Marcelo Lamy. Direito de voto. In: LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões (coord.). Direito das companhias. 2. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2017, p. 284.
(4) Sobre a referida ocorrência, cf. B3. B3 se prepara para receber novas ofertas com a criação do voto plural. Disponível em: https://www.b3.com.br/pt_br/noticias/novas-ofertas-com-a-criacao-do-voto-plural.htm. Acesso em: 24 jun. 2022; CUNHA, Marco Aurélio. Voto plural e quebra de paradigmas. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/coluna/voto-plural-e-quebra-de-paradigmas.ghtml. Acesso em: 24 jun. 2022; MOUTA, Flávia; SANTANA, Regerio; Opinião – Competitividade: o que esperar do mercado brasileiro com o voto plural. Disponível em: https://valorinveste.globo.com/mercados/renda-variavel/coluna/opiniao-competitividade-o-que-esperar-do-mercado-brasileiro-com-o-voto-plural.ghtml. Acesso em: 24 jun. 2022; CARVALHOSA, Modesto. Voto plural: evolução ou retrocesso? In: Diálogos com Coutinho de Abreu. Coimbra: Almedina, 2020.
(5) Estrutura semelhante é utilizada por sociedades que estão entre as maiores do Brasil e do mundo, como XP, Stone, Berkshire Hathaway, Ford, entre outras. Sobre o tema, cf. CARVALHOSA, Modesto. Voto plural: evolução ou retrocesso? In: Diálogos com Coutinho de Abreu. Coimbra: Almedina, 2020; PRADO, Viviane Muller; NANI, Ana Paula Ribeiro. Estamos Preparados para o Voto Plural?. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/disclosure/estamos-preparados-para-o-voto-plural-12082021. Acesso em: 24 jun. 2022; MCCLURE, Bem. The Two Sides of Dual-Class Shares. Disponível em: https://www.investopedia.com/articles/fundamental/04/092204.asp. Acesso em: 24 jun. 2022.
(6) PALAS, Rimona and SOLOMON, Dov, The Quality of Earnings Information in Dual-Class Firms: Persistence and Predictability (April 2, 2022). Journal of Law, Finance, and Accounting, v. 7, n. 1 (Forthcoming 2022), Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=4073761.
(7) A questão vem sendo discutida amplamente pelos operadores jurídicos da área, cf. RAGAZZI, Ana Paula. Advogados criticam propostas de MP para o voto plural. Disponível em: https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/06/15/advogados-criticam-proposta-de-mp-para-o-voto-plural.ghtml. Acesso em: 24 jun. 2022; SCHINCARIOL, Juliana. Voto plural tira de cena ação super PN. Disponível em: https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/08/31/voto-plural-tira-de-cena-acao-super-pn.ghtml. Acesso em: 24 jun. 2022.
(8) O conflito de agência é a oposição de interesses entre os participantes de uma sociedade, sendo os mais comuns: (i) entre acionistas e os executivos ou administradores e (ii) entre acionistas majoritários e minoritários de uma companhia. Sobre o tema, cf. BATTARELLO, Flábio Campestrin. Governança Corporativa: Fundamentos Jurídicos e Regulação. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 21-22.
(9) Para mais detalhes sobre o tema, vide acima e cf. KRAAKMAN, Reinier et al. The Anatomy of Corporate Law: A Comparative and functional approach. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 29-30; COELHO, Fábio Ulhoa Coelho. Nota sobre a Proibição do Voto Plural, Revista de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários, n. 12. Almedina, 2020; GONZALEZ, Gustavo Machado; VASCO, José Alexandre Cavalcanti; LYRA, Zora, CUNHA LOPES, Marília Carneiro da; BLUME, Daniel. Fortalecimento dos meios de tutela reparatória dos direitos dos acionistas no mercado de capitais brasileiro: relatório preliminar. Disponível em: https://www.gov.br/cvm/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/fortalecimento-dos-meios-de-tutela-reparatoria-dos-direitos-dos-acionistas-no-mercado-de-capitais-brasileiro-relatorio-preliminar-cvm-ocde-spe-me-outubro-2019. Acesso em: 24 jun. 2022.
(10) Em atenção a vedação à deliberação acerca de transações com partes relacionadas, a Comissão de Valores Mobiliários abriu o Edital de Audiência Pública de Audiência Pública SDM 09/21 para, entre outros, promover o debate acerca da definição dos critérios de relevância nas deliberações sociais ao tema, estipulado no artigo 110-A, § 12, II, da LSA, de sorte que esses critérios ainda estão em aberto.
(11) Conforme é possível verificar em Advogados criticam propostas de MP para o voto plural. Disponível em: https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/06/15/advogados-criticam-proposta-de-mp-para-o-voto-plural.ghtml. Acesso em: 27 jun. 2022.