O efeito das obrigações previstas em contrato para além das partes: breves reflexões a partir de recente decisão do STJ
Leila Bitencourt e Fernanda Galvão
A princípio, por ser firmado entre duas partes, é comum imaginar que o contrato somente pode produzir efeitos entre os sujeitos diretamente envolvidos no acordo. No entanto, a oponibilidade (1) das obrigações reconhecida na doutrina, em alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) e em previsões do Código Civil excepcionam essa máxima, como será brevemente exposto a seguir.
1) Relatividade e Oponibilidade das obrigações
O contrato surge com o encontro de duas declarações de vontades expressas com o objetivo de submeter seus declarantes às previsões contratuais (2). Desde o Direito Romano vale a máxima de que o contrato é negócio entre as partes, isto é, que as previsões contratuais vinculam apenas aqueles que firmaram o acordo. Ou seja, a princípio, contratantes estão vinculados ao que está previsto nas cláusulas, de modo que os efeitos dessas previsões se aplicam apenas entre o credor e o devedor das obrigações. A esse aspecto o direito inglês chamou de “privity of contract”, que pode ser entendido em português como “relatividade das obrigações” (3).
Para adequada compreensão da relatividade das obrigações, é importante destacar que ela é diferente de “oponibilidade”. A primeira diz respeito aos sujeitos da relação dos quais podem ser exigidas as obrigações. A segunda, por sua vez, está relacionada ao fato de que, mesmo que uma pessoa não faça parte do acordo firmado, ela não pode agir como se o contrato não existisse (4).
De fato, as obrigações assumidas no contrato somente podem ser exigidas, em regra (5), do devedor que as assumiu, pois a exigibilidade é relativa. Isso porque, “ninguém pode tornar-se devedor ou credor contra sua vontade” (6). Contudo, o terceiro deve se abster de atrapalhar a execução do acordo, justamente por conta da oponibilidade, na medida em que se aplica face à toda coletividade. Assim, as previsões contratuais devem ser respeitadas por todos aqueles que têm conhecimento da existência do contrato e dos aspectos que podem ser negativamente afetados por sua conduta.
Essa lógica pode ser vista no emblemático caso que envolveu o cantor Zeca Pagodinho, que reverbera até os dias atuais como será visto na decisão noticiada pelo STJ no início de junho deste ano.
2) A teoria do terceiro cúmplice, o caso Zeca Pagodinho e o STJ
Em 2005, a agência de publicidade África São Paulo Publicidade Ltda., responsável pela campanha da cerveja Brahma, foi condenada pela 9ª Vara Cível de São Paulo a indenizar R$500.000,00 e R$100.000,00, respectivamente, para as agências de publicidade Fisher América Comunicação e All-E Esportes Entretenimento, donas da conta da Nova Schin. Em síntese, o que motivou essa decisão foi a participação de Zeca Pagodinho, primeiramente contratado como garoto propaganda da Nova Schin, em campanha publicitária da concorrente, cerveja Brahma (7).
Na campanha da Nova Schin, Zeca Pagodinho aprovava o sabor da cerveja após ser incentivado pelo coro publicitário de “experimenta”. Porém, na campanha da cervejaria Brahma, o cantor interpretava um samba com os versos “fui provar outro sabor, eu sei. Mas não largo meu amor, voltei”, endossando a ideia de que a experiência anterior com a Nova Schin não foi duradoura, pois se tratou de um “amor de verão” (8).
O Tribunal paulista excluiu a condenação por dano moral e determinou outros critérios para a definição da quantia relativa aos danos materiais, razões pelas quais houve interposição de Recursos Especiais ao STJ por ambas as partes envolvidas, que foram julgados em 2014. Dentre outros pontos que foram tratados naquela ocasião, destaca-se o entendimento de que houve violação por parte da agência África da boa-fé objetiva prevista nos artigos 113, 187 e 422 do Código Civil, já que não foi observado o “dever geral imposto a toda a coletividade de manter uma postura ética, respeitando a relação contratual estabelecida entre dois contratantes” (9).
Nesse ponto, afirma o STJ que o violador desse aspecto do dever da boa-fé é chamado de “terceiro ofensor” pela doutrina, exemplificada na decisão em trecho escrito por Nelson Rosenvald, do qual destaca-se o seguinte:
a sociedade deve se comportar de modo a respeitar as relações jurídicas em curso, permitindo que alcancem o seu desiderato pela via adequada do adimplemento. Nesse instante, os contratantes retomam a sua liberdade e estão aptos a contrair novos negócios jurídicos, preservando o clima de estabilidade nas relações econômicas e propiciando uma confiança generalizada no cumprimento dos contratos. (10)
Portanto, esse caso é importante exemplo da aplicação prática da boa-fé para o reconhecimento da obrigação de indenizar de terceiro que esvazia contrato firmado entre outras partes, isto é, reconhecendo a eficácia transubjetiva das obrigações. Essa mesma lógica pode ser identificada em julgado do corrente ano pelo STJ, conforme detalhado a seguir.
3) A eficácia transubjetiva das obrigações no STJ em 2022
Em 3 de junho de 2022, o STJ noticiou decisão que determinou que o terceiro ofensor que interferiu indevidamente em execução do contrato deverá se responsabilizar pelos danos que causar. No caso, um terceiro teria enviado carta com conteúdo difamatório e vingativo para a patrocinadora de jogador de futebol, tendo o terceiro sido condenado no valor de R$50.000,00 pelos danos morais causados ao atleta. Mais detalhes sobre o caso não foram divulgados em razão de segredo de justiça (11).
A notícia da decisão destaca o entendimento do relator Ministro Marco Aurélio Belizze de que a responsabilidade do terceiro é extracontratual e tem como fundamento a função social do contrato, a proteção da honestidade e tutela da confiança. Ressalta o Ministro que os deveres da boa-fé objetiva não só protegem os terceiros de serem prejudicados por condutas praticadas no cumprimento do contrato, mas, também, resguarda os contratantes de práticas de sujeitos que estão fora da relação contratual e que podem afetar negativamente o cumprimento do acordo (11).
O Ministro entendeu que o caso se trata da aplicação do artigo 187 do Código Civil, que define o ato ilícito como sendo aquele que ultrapassa o limite do regular exercício de um direito. Ele explica que a liberdade de esse terceiro expressar sua opinião sobre o atleta foi abusiva, já que que ultrapassou o limite da boa-fé ao interferir em uma relação à qual não fazia parte (11).
Segundo a notícia, a decisão estabelece que, ainda que seja direito de todos poder expressar sua opinião sobre riscos de condutas de outrem, isso não pode ser feito de forma maliciosa, exagerada e com a intenção de fomentar o descumprimento de previsões contratuais assumidas pelas partes. Afirma ainda o Ministro que, como não houve o rompimento do vínculo contratual entre atleta e patrocinadora, a condenação restringe-se à quantia correspondente à lesão ao interesse existencial do atleta, isto é, aos danos morais (11).
Isso porque o contrato de patrocínio está diretamente ligado à divulgação da patrocinadora por meio da imagem do patrocinado, e, se este é relacionado a condutas desabonadoras, poderia restar configurado o descumprimento do contrato pelo atleta alvo da crítica desarrazoada, eis que o acordo não teria mais utilidade, o que poderia ensejar no encerramento do contrato com base no art. 475 do Código Civil.
Logo, conclui-se que, mesmo o sujeito sendo alheio à relação contratual, mais uma vez foi reconhecido que o terceiro ofensor de previsões assumidas em contrato deve indenizar os danos que causou ao interferir na regular execução contratual.
4) Breves reflexões conclusivas sobre o terceiro ofensor
Como atualmente as relações empresariais são estruturadas por meio dos contratos, é comum que ora a empresa figure como parte do acordo, ora como sujeito que pode interferir em uma relação contratual da qual não faz parte. Nesse cenário, é preciso avaliar o reconhecimento da eficácia transubjetiva das obrigações sob essas duas óticas.
Assim, como parte do contrato, é preciso estar atento à interferência de terceiros na execução do acordo, ciente de que é possível adotar medidas judiciais para impedir interferências indevidas, bem como para o ressarcimento por eventuais prejuízos causados em tal situação.
Por outro lado, como terceiro, é imprescindível realizar gestão eficiente da atuação da empresa de modo a identificar se alguma conduta pode prejudicar contratos firmados por outros sujeitos. Assim, na hipótese de constatação de interferência indevida, é possível tomar providências para cessar ou para prevenir condenação em danos morais e/ou materiais.
O VLF Advogados possui equipe especializada de consultoria de contratos e contencioso cível. Caso queira saber mais sobre esse assunto, basta entrar em contato conosco.
Leila Bitencourt
Advogada da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
Fernanda Galvão
Sócia-executiva e Coordenadora da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
(1) Segundo o Dicionário Michaelis, oponível significa “1. Qualidade ou condição de oponível. 2. Capacidade ou possibilidade de se colocar em oposição”, ou seja, qualidade ou condição do que é oponível, isto é, passível de se opor ou de funcionar em oposição. Definição disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?id=jOeWq. Acesso em: 24 jun. 2022.
(2) GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 11.
(3) NEVES, José Roberto de Castro. Direito das obrigações. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2009, p. 23.
(4) AZEVEDO, Antônio de Junqueira de. Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 142.
(5) Além da hipótese da exceção da relatividade tratada neste texto por meio do Terceiro Cúmplice, Paulo Nader (Curso de Direito Civil, 2018, p. 121) destaca que existem hipóteses de estipulação de terceiro e promessa de fato de terceiro, ambas disciplinas pelo Código Civil – arts. 436 a 440 – que, no entanto, não foram objeto de análise para elaboração deste texto.
(6) VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Contratos. São Paulo: Atlas, p. 29.
(7) STJ deverá decidir briga de cervejarias por Zeca Pagodinho. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-jun-03/stj-devera-decidir-briga-cervejarias-zeca-pagodinho. Acesso em: 17 jun. 2022.
(8) BRAHMA - ZECA PAGODINHO. Disponível em: http://www.conar.org.br/processos/detcaso.php?id=2475. Acesso em: 17 jun. 2022.
(9) Página 7 da decisão e voto do Recurso Especial nº 1.316.149 – SP. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=32265154&num_registro=201200598840&data=20140627&tipo=51&formato=PDF. Acesso em: 16 jun. 2022.
(10) Páginas 7 e 8 da decisão e voto do Recurso Especial nº 1.316.149 – SP. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=32265154&num_registro=201200598840&data=20140627&tipo=51&formato=PDF. Acesso em: 16 jun. 2022.
(11) Terceiro ofensor está sujeito à eficácia transubjetiva das obrigações, decide Terceira Turma. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/03062022-Terceiro-ofensor-esta-sujeito-a-eficacia-transubjetiva-das-obrigacoes--decide-Terceira-Turma. Acesso em: 9 jun. 2022.