Para evitar deturpação do objetivo da Lei 8.009/1990, o STJ considera que dívida com a construtora de imóvel próprio autoriza a penhora de bem de família do devedor
Yuri Luna Dias
A Lei nº 8.009/1990, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, tentou equilibrar interesses de credores e devedores ao evitar que os primeiros sejam despejados de seus lares por dívidas de qualquer tipo. Ao mesmo tempo, a lei também cuidou de trazer exceções para que o recebimento de dívidas não ficasse totalmente inviabilizado.
É esse o espírito do art. 3º da lei em questão, que traz algumas hipóteses em que a proteção ao imóvel do devedor é excepcionada:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I – Revogado;
II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III – pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida;
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens;
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Em geral, essas limitações visam proteger interesses mais urgentes, como a satisfação do crédito de pensão alimentícia e a integridade do sistema nacional de financiamento de imóveis, no caso de empréstimos para a construção ou aquisição da casa própria.
Foi com esse entendimento que a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) recentemente julgou o Recurso Especial nº 1.976.743, no qual ficou definido que é admissível a penhora de bem de família em razão de dívida oriunda de contrato de empreitada celebrado para a construção de imóvel próprio, nos termos do art. 3º, II, da Lei nº 8.009/1990, ainda que não seja hipótese de financiamento.
Nessa ação os devedores contrataram empreiteiro para a construção do imóvel que lhes serviria de moradia sem terem recorrido a empréstimos bancários. Porém, após o término das obras, os contratantes deixaram de pagar o construtor, que passou a exigir a dívida judicialmente e a requerer a penhora do bem com base no art. 3º, II, da Lei nº 8.009/1990, que excepciona a impenhorabilidade do imóvel por crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel.
Os devedores alegavam que o mencionado artigo é uma exceção à proteção legal da moradia e, portanto, deveria ser entendido de forma restritiva, ou seja, apenas o agente financeiro estaria resguardado contra a inadimplência do mutuário, mas não o empreiteiro.
Relatora do processo no STJ, a ministra Nancy Andrighi ressaltou no julgamento que a impenhorabilidade do bem de família não é absoluta e que para conter abusos supostamente fundados na lei, é necessário que o julgador não fique restrito à letra da lei.
Assim, ela entendeu que a palavra “financiamento” no art. 3º, II, da Lei nº 8.009/1990, deve ser entendida não só para dívidas com agentes financeiros, como bancos, mas também para dívidas relativas a contratos de empreitada para a construção do imóvel, a exemplo de precedentes naquele tribunal.
Nas palavras da Ministra, “é nítida a preocupação do legislador no sentido de impedir a deturpação do benefício legal”, assim, “ao interpretar a norma, incumbe ao intérprete identificar a mens legis, isto é, o que o legislador desejaria se estivesse vivenciando a situação analisada”.
Portanto, embora o rol de exceções da lei de impenhorabilidade do bem de família seja restrito, sua interpretação deve vir em consonância com os princípios do direito para evitar abusos daqueles que se apegam à interpretação mais literal do texto legal.
Yuri Luna Dias
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados