Limites da responsabilidade do franqueador e a recente decisão do STJ
Felipe Melazzo e Leila Bitencourt
Em decisão noticiada no dia 30 de junho, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), por meio do julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.456.249/SP (“Recurso”), avaliou até que ponto o franqueador responde solidariamente com o franqueado em caso de danos causados ao cliente da franquia.
A seguir, serão destacados alguns pontos dessa decisão e, antes de tratar das conclusões pertinentes ao assunto, serão analisados os principais aspectos jurídicos relacionados ao contrato de franquia, aos sujeitos envolvidos e, por fim, a como o franqueador responde por danos causados pelo franqueado aos consumidores finais, segundo o STJ.
1) O Contrato de Franquia e os sujeitos envolvidos
A atual Lei de Franquias, Lei nº 13.966 (1), que tomou lugar da antiga Lei nº 8.955/1994 em 2019, como noticiado no Informativo VLF - 64/2020 (2), estabelece que a franquia é um contrato empresarial em que o franqueador autoriza o franqueado a utilizar suas marcas e outros objetos de sua propriedade intelectual, bem como transfere a ela o direito de utilizar métodos ou sistemas de implantação e administração de negócio, também conhecido como “know-how”. Como contraprestação, o franqueado deve remunerar, direta ou indiretamente, o franqueador.
Assim, no contrato de franquia, o franqueador transfere o seu “saber como fazer” determinada atividade empresarial para que o franqueado possa replicá-lo ao oferecer produtos e serviços no mercado, desfrutando de todo o conhecimento que lhe foi transferido (marca, técnicas, metodologias de administração do negócio etc.) (3).
Como os produtos e serviços da franquia podem ser oferecidos a destinatários finais, isto é, a consumidores finais, franqueado e franqueador podem ser enquadrados como fornecedores. Isso torna aplicável o Código de Defesa do Consumidor (“CDC”), que, por sua vez, estabelece normas específicas sobre a responsabilidade de todos envolvidos nas vendas aos clientes, tema do próximo tópico.
2) A responsabilidade solidária entre franqueados e franqueadores conforme o Código de Defesa do Consumidor
Segundo o Art. 3º do CDC, é fornecedor todo aquele que se envolve na atividade ou cadeia de fabricação de um produto e/ou oferecimento de serviço, seja na criação, na produção ou na venda (4).
Assim, quando o franqueado vende produtos e serviços conforme o know-how repassado pelo franqueador perante o consumidor final, as duas empresas envolvidas na oferta aos clientes são consideradas fornecedoras para o CDC. Nesse cenário, indaga-se: isso significa que, em caso de danos decorrentes de produtos ou serviços ofertados pela franquia, há algum tipo de responsabilidade conjunta entre franqueado e franqueador?
Sim, há responsabilidade de ambos, conforme determinam os arts. 14 e 18 do CDC, que estabelecem, ainda, que essa responsabilidade é solidária, ou seja, que tanto o franqueado quanto o franqueador podem ser acionados em conjunto ou individualmente pelo consumidor para pagar a totalidade da indenização (5).
Destaca-se que essa solidariedade tem amplo alcance, pois se aplica tanto para os fornecedores que ofertam efetivamente o produto ou serviço no mercado, quanto para aqueles que organizam a cadeia de fornecimento, isto é, participam de qualquer etapa do fluxo ou gerenciam de alguma forma o processo que possibilita a disponibilização do produto ou serviço (6).
Sendo assim, não há dúvida de que, em caso de danos decorrentes dos produtos ou serviços adquiridos pelos consumidores finais de uma franquia, franqueado e franqueador podem ser responsabilizados solidariamente por eventuais danos causados aos clientes, pois são fornecedores.
Entretanto, é possível afirmar que tal responsabilização é ilimitada, ou seja, que o franqueador deve responder por todos os danos causados pelo franqueado ao consumidor? Essa pergunta foi respondida pelo STJ ao decidir o Recurso, cujos principais aspectos serão expostos a seguir.
3) Principais pontos sobre os limites de responsabilidade do franqueador segundo recente decisão do STJ
A decisão proferida no referido Recurso (7) tratou de caso em que o franqueador de uma metodologia educacional foi acionado pelos pais para indenizar os danos causados pelo falecimento do filho em um acidente de trânsito. Nesse caso, foi reconhecida a culpa do serviço de transporte escolar oferecido pelo franqueado.
Antes de chegar ao STJ, o caso foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJSP”), ocasião em que foi decidido que tanto o franqueador quanto o franqueado eram responsáveis pelo dano, por integrarem, enquanto fornecedores, a mesma cadeia de prestação do serviço educacional.
Porém, após o Recurso dirigido ao STJ, foi reafirmado (8) pela Quarta Turma o entendimento de que o franqueador não pode ser responsabilizado por obrigações estranhas ao objeto da franquia.
No caso em questão, o dano foi causado por um serviço acessório oferecido pelo franqueado (transporte escolar), isto é, que não decorre diretamente do serviço principal objeto do contrato de franquia (metodologia educacional).
Segundo o voto do Ministro Raul Araújo, Relator do Recurso, a franqueadora se caracteriza como organizadora da cadeia de consumo dos serviços principais oferecidos pela franqueada, mas não dos serviços periféricos que não guardam relação com a franquia. Nos termos do CDC, a franqueada intermedeia a contratação da metodologia educacional da franquia pelo cliente, por isso, deve responder pelos danos causados a esses consumidores. Porém, em relação ao franqueador, essa responsabilidade está restrita aos danos decorrentes dos serviços que têm relação direta com o objeto contratual da franquia.
4) Breves reflexões conclusivas
Em linhas gerais, conclui-se que o entendimento reafirmado pelo STJ é de que o franqueador responde solidariamente com o franqueado enquanto fornecedor dos produtos e serviços oferecidos apenas no que se refere aos danos relacionados ao objeto principal da franquia.
Tal definição lança luz para a importância das estipulações realizadas no contrato de franquia. Isso porque, se para o franqueador o objeto contratual pode limitar as hipóteses em que terá responsabilidade solidária perante o consumidor da franquia, por outro lado, pode diminuir as possibilidades de o franqueado se valer dessa solidariedade caso seja condenado a indenizar seus clientes.
Assim, torna-se pertinente que as partes se atentem para definir, de forma detalhada, clara e expressa, o objeto principal do contrato. Isso porque, se houver algum dano decorrente dos produtos ou serviços oferecidos pela franquia, é possível antever os limites de eventuais responsabilidades, conforme o referido entendimento do STJ.
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Felipe Melazzo
Advogado da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Leila Bitencourt
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) BRASIL. Lei nº 13.966, de 26 de dezembro de 2019. Dispõe sobre o sistema de franquia empresarial e revoga a Lei nº 8.955, de 15 de dezembro de 1994 (Lei de Franquia). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13966.htm. Acesso em: 14 jul. 2022.
(2) BATISTA, Arthur; BITENCOURT, Leila. Nova Lei que trata de franquia empresarial entra em vigor a partir de março. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=752. Acesso em: 14 jul. 2022.
(3) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Contratos. v. III. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017, p. 372.
(4), (5) e (6) BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 14 jul. 2022.
(7) BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Quarta Turma). Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.456.249/SP. Rel. Ministro Raul Araújo, 07 jun. 2022. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 20/06/2022. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2182088&num_registro=201900477632&data=20220620&peticao_numero=202000342890&formato=PDF. Acesso em: 14 jul. 2022.
(8) O entendimento já havia sido estipulado pelo STJ em julgamentos anteriores, como o do Recurso Especial nº 1.426.578/SP e do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 398.786/PR.