A (in)aplicabilidade do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro e a ponderação entre garantias constitucionais
Kelly Sousa
Em 10 de fevereiro de 2021, ao julgar Recurso Extraordinário com Repercussão Geral, o RE 1010606, Tema nº 786, o Supremo Tribunal Federal (“STF”) definiu o direito ao esquecimento como o “poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social, analógicos ou digitais”.
Naquela oportunidade, por decisão majoritária, o STF decidiu pela inaplicabilidade do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro por ser incompatível com a Constituição Federal, optando, assim, por privilegiar os princípios da liberdade de expressão e de comunicação, da liberdade de imprensa e a proibição da censura (art. 5º, XIV e XXXIII e art. 220, §1º, todos da Constituição da República) (1) como basilares ao exercício da democracia. A tese firmada foi a seguinte:
É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.
No entanto, quando do julgamento, esse entendimento foi relativizado pelo próprio Tribunal, que apontou a necessidade de que o exercício do direito à informação não viole de maneira abusiva o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem da pessoa.
Por seu turno, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), antes mesmo do julgamento do RE 1010606, já havia externado o entendimento de não ser “tolerável o abuso, estando a liberdade de expressar-se, exprimir-se, enfim, de comunicar-se, limitada à condicionante ética do respeito ao próximo e aos direitos da personalidade” (REsp 1594865/RJ, Quarta Turma, DJe 18/08/2017).
É fácil notar, portanto, que a inconstitucionalidade do direito ao esquecimento não é absoluta e que para assegurar a harmonia entre os direitos à informação e aqueles inerentes à personalidade, o Poder Judiciário deve analisar caso a caso as situações que lhe são apresentadas.
Por isso, o STJ vem reconhecendo a ocorrência de abusos quando a simples busca pelo nome de uma pessoa na Internet traz resultados degradantes sobre ela, mesmo sem que algum parâmetro específico tenha sido utilizado. Nestas situações, o STJ tem determinado a desindexação (ou de-listagem) de certos resultados vinculados ao nome daqueles que comprovam violação aos seus direitos de personalidade, ainda que os fatos apresentados nas buscas sejam verídicos. Aqui vale a transcrição de ementa extraída de um julgado sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. 1. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. AUSÊNCIA. 2. JULGAMENTO EXTRA PETITA. NÃO CONFIGURADO. 3. PROVEDOR DE APLICAÇÃO DE PESQUISA NA INTERNET. PROTEÇÃO A DADOS PESSOAIS. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. DESVINCULAÇÃO ENTRE NOME E RESULTADO DE PESQUISA. PECULIARIDADES FÁTICAS. CONCILIAÇÃO ENTRE O DIREITO INDIVIDUAL E O DIREITO COLETIVO À INFORMAÇÃO. 4. MULTA DIÁRIA APLICADA. VALOR INICIAL EXORBITANTE. REVISÃO EXCEPCIONAL. 5. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.
1. Debate-se a possibilidade de se determinar o rompimento do vínculo estabelecido por provedores de aplicação de busca na internet entre o nome do prejudicado, utilizado como critério exclusivo de busca, e a notícia apontada nos resultados.
[...]
3. A jurisprudência desta Corte Superior tem entendimento reiterado no sentido de afastar a responsabilidade de buscadores da internet pelos resultados de busca apresentados, reconhecendo a impossibilidade de lhe atribuir a função de censor e impondo ao prejudicado o direcionamento de sua pretensão contra os provedores de conteúdo, responsáveis pela disponibilização do conteúdo indevido na internet. Precedentes.
4. Há, todavia, circunstâncias excepcionalíssimas em que é necessária a intervenção pontual do Poder Judiciário para fazer cessar o vínculo criado, nos bancos de dados dos provedores de busca, entre dados pessoais e resultados da busca, que não guardam relevância para interesse público à informação, seja pelo conteúdo eminentemente privado, seja pelo decurso do tempo.
5. Nessas situações excepcionais, o direito à intimidade e ao esquecimento, bem como a proteção aos dados pessoais deverá preponderar, a fim de permitir que as pessoas envolvidas sigam suas vidas com razoável anonimato, não sendo o fato desabonador corriqueiramente rememorado e perenizado por sistemas automatizados de busca.
6. O rompimento do referido vínculo sem a exclusão da notícia compatibiliza também os interesses individual do titular dos dados pessoais e coletivo de acesso à informação, na medida em que viabiliza a localização das notícias àqueles que direcionem sua pesquisa fornecendo argumentos de pesquisa relacionados ao fato noticiado, mas não àqueles que buscam exclusivamente pelos dados pessoais do indivíduo protegido.
7. No caso concreto, passado mais de uma década desde o fato noticiado, ao se informar como critério de busca exclusivo o nome da parte recorrente, o primeiro resultado apresentado permanecia apontando link de notícia de seu possível envolvimento em fato desabonador, não comprovado, a despeito da existência de outras tantas informações posteriores a seu respeito disponíveis na rede mundial.
8. O arbitramento de multa diária deve ser revisto sempre que seu valor inicial configure manifesta desproporção, por ser irrisório ou excessivo, como é o caso dos autos.
9. Recursos especiais parcialmente providos.
(REsp 1660168/RJ, Relª. Minª Nancy Andrighi, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, TERCEIRA TURMA, j. 08/05/2018)
A velocidade de propagação de dados pela Internet e a inegável permanência das informações que são inseridas neste meio de comunicação têm sido reputadas pelos julgadores como formas de penalizar eternamente alguém por acontecimentos passados.
A finalidade não é excluir dos motores de busca notícias, artigos ou reportagens sobre determinado indivíduo, mas sim filtrar os métodos de consulta para que uma simples busca pelo nome não traga informações que o desabonem.
Recentemente, o Informativo de Jurisprudência nº 743 (2), divulgou referências sobre o resultado de um julgamento relativo a recurso interposto em processo que tramitou em segredo de justiça. Nele, o STJ apreciou a pretensão de determinada pessoa de ver excluída da listagem de resultados de buscas da Internet, reportagens relacionadas com fraudes a concurso público e que eram obtidas apenas com seu nome.
Na busca de assegurar a harmonia entre direitos constitucionais, a Terceira Turma deliberou neste caso que os provedores de busca na Internet deveriam desvincular o nome pessoa – desde que sem o emprego de outro termo – do fato que vinha causando constrangimentos para ela.
Pode-se concluir que, ao excluir alguns resultados de busca específicos e não determinar a exclusão das notícias relacionadas à pessoa, nem impedir que terceiros tenham acesso à informação em razão da passagem do tempo, o STJ tem buscado harmonizar as garantias constitucionais da liberdade de expressão e do direito à informação com os direitos da personalidade.
A bem da verdade, não existem soluções acabadas para todas as situações que envolvem o direito ao esquecimento – em especial na internet –, o que revela a necessidade de que o Poder Judiciário analise com acuidade as peculiaridades atinentes a cada situação fática, para que as decisões proporcionem o necessário equilíbrio entre os direitos fundamentais.
Kelly Sousa
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
(2) INFORMATIVO nº 743. 8 de agosto de 2022. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/. Acesso em: 26 ago. 2022.