Decisão da CSRF afasta incidência de Pis/Cofins sobre descontos obtidos na aquisição de mercadorias, por caracterizá-los como recuperação de custo
Henrique Coimbra
Em sessão deste mês de setembro, ao julgar o Processo nº 10480.722794/2015-59, a 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (“CSRF”) decidiu que não incide Pis/Cofins sobre os descontos obtidos na aquisição de mercadorias, haja vista que eles não têm natureza de receita, e se caracterizam como redução do custo de aquisição. A decisão, definida pelo desempate pró-contribuinte, representou uma mudança na jurisprudência em relação ao tema.
A prática de concessão de descontos realizada por fornecedores, ora no valor da nota fiscal emitida, quer diminuídos do preço no boleto, ou através de mercadorias ou recursos diretos para indenizar vendas por valor inferior ao preço de aquisição, há tempos vinha sendo vista pela jurisprudência da Câmara Superior como manifestação de obtenção de receita.
Esse entendimento considerava que os descontos obtidos junto a fornecedores na aquisição de mercadorias representavam benefícios econômicos auferidos na exploração do objeto social do contribuinte, que resultavam no aumento do seu patrimônio, caracterizando-os como receita, ao alcance da tributação das contribuições Pis/Cofins, portanto.
Nesse sentido, foi o posicionamento adotado pelo conselheiro relator Valcir Gassen, no mencionado julgamento, ao considerar que os descontos obtidos têm natureza de receita, ainda que nenhuma quantia tenha ingressado fisicamente nos cofres do contribuinte.
Todavia, a conselheira Tatiana Midori Migiyama abriu divergência para dar provimento ao recurso quanto à não incidência das contribuições sobre os descontos, entendendo que eles constituem redução de custos de aquisição de produtos, não havendo de se falar em ingresso de recursos novos para o adquirente. Como houve empate na adesão às teses divergentes foi aplicada a regra do desempate em favor do contribuinte.
O acertado entendimento empregado nessa decisão tem amplo amparo nas lições de Geraldo Ataliba, que considera inafastável para a caracterização da receita a existência de um efetivo ingresso de dinheiro que passa a pertencer à entidade (1). Na mesma linha se posiciona Marco Aurélio Greco ao comentar o art. 195, I, “b”, da CF/88 que estabelece três requisitos para configuração da receita: natureza permanente, origem na atividade do objeto social e créditos de valores:
Considerando que esta realidade é pressuposto de contribuição específica, não se pode dar à palavra “receita” utilizada no artigo 195, I, “b”, um sentido tão lasso que implique abranger toda e qualquer movimentação financeira ou de créditos e valores dessa natureza.
Portanto, nem todo “dinheiro” que “entra” no universo da disponibilidade da pessoa jurídica integra a base de cálculo da Cofins. Não basta ser uma “entrada” (mera movimentação financeira) é preciso que se configure como “ingresso”, no sentido de entrada com sentido de permanência e que resulte da exploração da atividade que corresponda ao seu objeto social (ou dele decorrente) (2).
Essa também é a conclusão de Marcelo Knoepfelmacher para quem “os dispositivos do texto permanente da Constituição Federal nos dão a ideia de receita como o ingresso (novo) de valores que se incorporam positivamente ao patrimônio” (3). Tércio Sampaio Ferraz Jr., igualmente, afirma que receita “é a quantidade de valor financeiro, originário de outro patrimônio, cuja propriedade é adquirida pela sociedade empresária ao exercer as atividades que constituem as fontes do resultado, conforme o tipo de atividade por ela exercida” (4). Assim também se posiciona José Antônio Minatel, para quem receita pode ser qualificada como:
Ingresso de recursos financeiros no patrimônio da pessoa jurídica, em caráter definitivo, proveniente dos negócios jurídicos que envolvam o exercício de atividade econômica ou empresarial, que corresponda à contraprestação pela venda de mercadorias, pela prestação de serviços, assim como pela remuneração de investimentos ou pela cessão onerosa e temporária de bens e direitos a terceiros, aferido instantaneamente pela contrapartida que remunera cada um desses eventos (5).
Ao tratar especificamente da qualificação de descontos comerciais, José Antônio Minatel é categórico ao concluir que estes não se qualificam juridicamente como receita, mas sim como redutores de custo de aquisição:
6.3. As “bonificações em mercadoria” e os “descontos obtidos” nas operações de compra e venda de mercadorias, desde que se apresentem como “vantagens econômicas” vinculadas aos contratos de fornecimento celebrados entre fornecedor e revendedor, têm natureza jurídica de “redução do custo de aquisição” correspondente, não podendo ser qualificadas como “receita” na medida em que são eventos relacionados à aquisição de bens e direitos, e não à atividade-fim que visa colocá-los no mercado.
6.4. Portanto, as “bonificações” pactuadas como “vantagens econômicas” consensualmente acordadas que interferem na finalização do “preço” da operação têm natureza de “redução de custos” para a beneficiária, quer sejam consideradas como “condicionais” ou “incondicionais”, classificação esta que só tem relevância para determinação da base de cálculo de tributos a cargo do vendedor, não do comprador (6).
Tais considerações acompanham também a ótica da Ciência Contábil, porque os descontos comerciais são redutores de custo de aquisição das mercadorias, não integram a receita da pessoa jurídica, não tributáveis pelo Pis/Cofins. De acordo com as diretrizes contidas no item 11 do CPC 16 (Estoques) os descontos comerciais não constituem receita e devem ser deduzidos da determinação do custo de aquisição. Veja:
CPC 16
11. O custo de aquisição dos estoques compreende o preço de compra, os impostos de importação e outros tributos (exceto os recuperáveis junto ao fisco), bem como os custos de transporte, seguro, manuseio e outros diretamente atribuíveis à aquisição de produtos acabados, materiais e serviços. Descontos comerciais, abatimentos e outros itens semelhantes devem ser deduzidos na determinação do custo de aquisição.
O voto vencido proferido pela ilustre conselheira relatora Vanessa Marini Cecconello no Acórdão nº 9303-007.403 da CSRF (7), no ano de 2018, não deixa dúvida sobre a relevância do entendimento da Ciência Contábil para fins de afastar a incidência tributária das referidas contribuições sobre esses descontos comerciais:
Conhecidas as regras contábeis vigentes no Brasil segundo os CPC nºs 16 e 30, de 2009 e Deliberações CVM nºs 575 e 597, de 05 de junho e 15 de Setembro de 2009, respectivamente, assim como as regras internacionais contábeis, às quais o Brasil está em convergência especialmente após a edição da Lei nº 11.638/07 (que promoveu significativas alterações na Lei nº 6.404/76 – LSA´s), resta claro que as bonificações e descontos comerciais obtidos têm tratamento contábil de redução de custos, sendo que devem ser reconhecidos à conta de resultado ao final do período, se o desconto corresponder a produtos já efetivamente comercializados, ou à conta redutora de estoques, se o desconto referir-se a mercadorias ainda não comercializadas pela entidade. Não podem ser reconhecidas como receita pelo vendedor assim como não são custos pelo comprador. A pretensão de reconhecer as bonificações ou descontos como receita pelo comprador, contrariaria inteiramente os princípios contábeis geralmente aceitos, pois ao mesmo tempo seria receita do vendedor (que não a pôde deduzir por proibição fiscal – já que não trata-se de “desconto incondicional) e do comprador. (...)
O entendimento da Ciência Contábil de que a bonificação ou desconto comercial devem ser classificados como redução de custo, exerce influência no Direito Tributário, em especial no tema quanto à incidência das contribuições para o PIS e a COFINS. Essa interpretação decorre das normas contidas nos artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional (CTN), in verbis: (...)
Portanto, o conteúdo dos institutos custo e receita, grandezas de natureza econômica, devem ser interpretados pelas regras que lhes são próprias, não podendo ser alteradas para o único fim da incidência tributária. (...)
Ainda, no exercício da competência que lhe foi outorgada pela legislação societária, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) editou as Deliberações CVM nºs 575 e 597/2009, que aprovaram os CPC´s nºs 16 e 30, respectivamente, estabelecendo normas sobre a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos de direito societário de sua competência, dentre eles o custo e a receita, e determinando que as bonificações e/ou descontos comerciais não integram a receita da entidade societária, pois se trata de redução de custos dos estoques.
Nessa linha relacional, importa consignar que os artigos 1ºs das Leis nºs 10.637/2002 e 10.833/2003, ao regularem as bases de cálculo do PIS e da COFINS, elegeram-na como a totalidade das receitas de pessoa jurídica, independentemente de sua classificação contábil. Isso significa dizer que a tributação recairá sobre o que efetivamente se constitui como receita, e não sobre outra grandeza que a ela não se amolde em termos de definição, conteúdo e forma, interpretação esta que se faz em consonância com as diretrizes estabelecidas nos artigos 195, inciso I, alínea "a" e 239, ambos da Constituição Federal.
Daniel Tanganelli Coelho, Marta Cristina Pelucio Grecco e Rodrigo Paiva Souza, em análise sobre o assunto à luz das normas da contabilidade e da legislação tributária, também concluem pela inexistência de receita em descontos condicionais:
Com base na norma contábil nacional e internacional, na teoria da contabilidade e na legislação tributária, o correto reconhecimento de descontos condicionais na aquisição, por em regra estarem intimamente ligados com a aquisição de estoque, não devem impactar a receita da entidade já que não traduzem a transferência de controle de bem ou serviço decorrente da prática da atividade empresarial de forma isolada, mas sim ajuste do preço de mercadorias ou serviços adquiridos (8).
Dessa maneira, os descontos comerciais não se qualificam juridicamente como receita para fins de tributação pelo Pis/Cofins, mas como redutores de custo, assegurado pelo dever de realizar ajustes na escrituração contábil a fim de que seja registrado o efetivo custo de aquisição suportado na aquisição de produtos.
A decisão da 3ª Turma da CSRF pode ampliar um debate importante sobre o tema, para legitimar uma antiga prática comercial, especialmente em setores de distribuição para o varejo.
Mais informações sobre como assegurar o direito de creditamento podem ser obtidas com a equipe de direito tributário do VLF Advogados.
Henrique Coimbra
Coordenador da Equipe Tributária do VLF Advogados
(1) “O conceito receita refere-se a uma espécie de entrada. Entrada é todo dinheiro que ingressa nos cofres de determinada entidade. Nem toda entrada é receita. Receita é a entrada que passa a pertencer à entidade. Assim, só se considera receita o ingresso de dinheiro que vem a integrar o patrimônio de entidade que a recebe.” ATALIBA, Geraldo. ISS – Base imponível. Receitas. Publicidade. In:______. Estudos e pareceres de direito tributário. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1978, v. 1, p. 85.
(2) GRECO, Marco Aurélio. Cofins na lei 9.718/98: variações cambiais e regime da alíquota acrescida. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 50, nov. 1999, p.129.
(3) KNOEPFELMACHER, Marcelo et al. O conceito de receita na constituição: método para sua tributação sistemática. 2006. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. p. 80.
(4) FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Revista Fórum de Direito Tributário. n. 28.
(5) MINATEL, José Antonio. Conteúdo do Conceito de Receita e Regime Jurídico Para Sua Tributação. São Paulo: MP Editora, 2005. p.124.
(6) MINATEL, José Antônio. Bonificações e descontos obtidos nas compras: qualificação jurídica impede a incidência de PIS/COFINS. 2014.
(7) CSRF, Acórdão n. 9303007.403, PAF n. 11080.011290/2006-94, 3ª Turma, sessão do dia 18/09/2018.
(8) COELHO, Daniel Tanganelli; GRECCO, Marta Cristina Pelucio; SOUZA, Rodrigo Paiva. Contabilização e Tratamento Fiscal de Descontos Condicionais na Aquisição de Mercadorias. R. Liceu On-line, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 174, jan./jun. 2020.