Entenda os contornos do contrato de Stalking Horse no âmbito do processo de Recuperação Judicial
Eduardo Metzker Fernandes
O inciso XI do artigo 50 da Lei nº 11.101/05 (“LRF”) autoriza expressamente a venda de ativos da Recuperanda como um dos meios de recuperação judicial previstos em lei:
Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros: (…)
XI – venda parcial dos bens.
Com o objetivo de satisfazer os créditos e cumprir o plano de recuperação judicial, os artigos 60 e 140 da LRF, por sua vez, trazem a expressa possibilidade de alienação de filiais ou unidades produtivas isoladas da Recuperanda, veja-se:
Art. 140. A alienação dos bens será realizada de uma das seguintes formas, observada a seguinte ordem de preferência:
I – alienação da empresa, com a venda de seus estabelecimentos em bloco;
II – alienação da empresa, com a venda de suas filiais ou unidades produtivas isoladamente;
III – alienação em bloco dos bens que integram cada um dos estabelecimentos do devedor;
IV – alienação dos bens individualmente considerados.
Para a efetivação da referida alienação de bens, a Lei nº 14.112/20, que atualizou a legislação brasileira de insolvência, autorizou o uso de leilão, processo competitivo organizado e “qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos desta lei” (LRF, artigo 142).
Nessa mesma diretriz, o art. 144 prevê que “havendo motivos justificados, o juiz poderá autorizar, mediante requerimento fundamentado do administrador judicial ou do Comitê, modalidades de alienação judicial diversas das previstas no art. 142 desta lei”.
A legislação brasileira, portanto, confere certo grau de liberdade para a prática da alienação de ativos da Recuperanda, permitindo ao devedor em reestruturação celebrar contrato de Stalking Horse com interessados na compra de seus ativos. As condições gerais do ajuste podem ser formalizadas por contrato próprio se a venda for realizada na forma do artigo 66 da LRF, ou como cláusula constante do plano de recuperação judicial, quando a venda é realizada como um meio de recuperação.
A possibilidade de venda da empresa ou de parte dela tem nítida influência do direito norte-americano. A seção 363 do Código de Insolvência Americano (United States Bankruptcy Code), que regula a reestruturação das empresas nos Estados Unidos, admite expressamente a alienação da empresa devedora, total ou parcialmente, com vistas a garantir o cumprimento do plano de recuperação judicial e soerguimento da Recuperanda:
The trustee, after notice and a hearing, may use, sell, or lease, other than in the ordinary course of business, property of the estate, except that if the debtor in connection with offering a product or a service discloses to an individual a policy prohibiting the transfer of personally identifiable information about individuals to persons that are not affiliated with the debtor and if such policy is in effect on the date of the commencement of the case, then the trustee may not sell or lease personally identifiable information to any person unless—
(A) such sale or such lease is consistent with such policy; or
(B) after appointment of a consumer privacy ombudsman in accordance with section 332, and after notice and a hearing, the court approves such sale or such lease—
(i) giving due consideration to the facts, circumstances, and conditions of such sale or such lease; and
(ii) finding that no showing was made that such sale or such lease would violate applicable nonbankruptcy law. (1)
Nas operações de alienação dos ativos da Recuperanda realizadas à luz do direito norte-americano é comum a participação da figura do Stalking Horse. Esse personagem de nome estrangeiro é um terceiro interessado na compra do ativo que oferece um primeiro lance para sua compra. O preço oferecido por esse primeiro interessado (Stalking Horse) funciona como um valor mínimo e vinculante para o ativo, garantindo a sua venda desde logo, e servindo, muitas vezes, como incentivo à competição pela sua aquisição.
A expressão Stalking Horse tem origem na tática utilizada para a caça de animais selvagens em que o caçador se esconde atrás de um cavalo (ou da imagem de um cavalo) para conseguir se aproximar da presa sem espantá-la.
O Stalking Horse tem a prerrogativa de cobrir eventual lance superior de outro interessado, exercendo o direito de preferência que lhe é garantido como uma espécie de compensação pelo oferecimento de lance inicial vinculante.
Percebe-se, assim, que o contrato firmado entre a Recuperanda e o Stalking Horse pressupõe uma condição suspensiva, qual seja, uma possível oferta mais vantajosa de um terceiro interessado. Nesse caso, se o Stalking Horse não cobrir a oferta o negócio jurídico não se aperfeiçoará. Por outro lado, inexistindo oferta superior, a operação se concretiza.
Há, ainda, a possibilidade de se estabelecer uma penalidade em favor do Stalking Horse caso o contrato não se aperfeiçoe.
A utilização do Stalking Horse nas operações de venda de ativos de empresa em Recuperação Judicial serve tanto para o devedor conhecer melhor a realidade do mercado, como para garantir um preço mínimo razoável e fomentar a concorrência entre os interessados.
Sendo compatível com o nosso ordenamento jurídico – especialmente com o princípio da preservação da empresa por meio da alienação de ativos a preços compatíveis com o mercado –, já se tem visto por aqui a prática de alienação de ativos com a participação do Stalking Horse, como se deu, por exemplo, nos casos da OAS, do Grupo Abengoa e do Grupo Estre.
Eduardo Metzker Fernandes
Coordenador da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) “O fiduciário, após notificação e audiência, pode usar, vender ou arrendar, exceto no curso normal dos negócios, propriedade do espólio, exceto se o devedor em conexão com a oferta de um produto ou serviço divulgar a um indivíduo uma política que proíbe a transferência de informações de identificação pessoal sobre indivíduos para pessoas que não são afiliadas ao devedor e se tal política estiver em vigor na data do início do caso, o administrador não poderá vender ou alugar informações de identificação pessoal a qualquer pessoa, a menos que—
(A) tal venda ou arrendamento é consistente com tal política; ou
(B) após a nomeação de um ouvidor de privacidade do consumidor de acordo com a seção 332, e após notificação e audiência, o tribunal aprova tal venda ou arrendamento—
(i) dando a devida consideração aos fatos, circunstâncias e condições de tal venda ou arrendamento; e
(ii) constatar que nenhuma demonstração foi feita de que tal venda ou arrendamento violaria a lei de não falência aplicável.” (Tradução nossa)