Facetas do Direito de Preferência nos Acordos de Sócios: preferência pura, first offer e first refusal
Letícia Camargos Ferraz e Pedro Ernesto Rocha
O direito de preferência na alienação de participação societária decorre do interesse das partes na limitação da circulação das ações ou quotas de uma sociedade, a partir da adoção de arranjos societários que privilegiem a manutenção das mesmas pessoas no quadro societário em detrimento da entrada de terceiros alheios às atividades sociais. Neste sentido, do ponto de vista do sócio remanescente, a inclusão do direito de preferência serve-se a protegê-lo dos potenciais riscos decorrentes da alteração do seu sócio e consequentemente da dinâmica societária previamente estabelecida.
Em síntese, o direito de preferência para aquisição de ações é o direito que um acionista ou quotista (“Sócio Alienante”) outorga aos demais sócios (“Sócios Remanescentes”) para que estes possam adquirir a sua participação societária no lugar de um terceiro interessado (“Terceiro Interessado”), nas mesmas condições comerciais propostas pelo Terceiro Interessado (1). Em outras palavras, no vínculo societário orientado por cláusulas de direito de preferência, caso um sócio tenha a intenção de alienar a sua participação societária, os outros sócios terão a prioridade na aquisição dessas quotas ou ações.
Interessante fazer um esclarecimento sobre o que diz (ou não diz) a legislação acerca do tema. A Lei nº 10.406/2002 (“Código Civil”) e a Lei nº 6.404/76 (“Lei das S.A.” ou “LSA”) preveem o direito de preferência somente para os casos de subscrição de quotas (artigo 1.081 do Código Civil) ou ações (artigo 171 da Lei das S.A.) em aumentos de capital, de modo a evitar a diluição dos sócios (2). Porém, a legislação não assegura o direito de preferência para casos de alienação de participações societárias, de modo que a existência desse direito não provém da lei, mas, sim, provém da conveniência das partes em fixá-lo em acordos societários (3).
Por outro lado, a adoção do direito de preferência e das regras que o regerão poderá ser feita no Estatuto ou Contrato Social. Contudo, a diversidade e complexidade dos relacionamentos societários ocasionam no deslocamento da disciplina de vários aspectos de direitos e deveres dos sócios para instrumentos particulares (4), motivo pelo qual na prática societária o direito de preferência na aquisição de participações societárias é comumente objeto de Acordos de Sócios (5).
Em consonância com o contexto particular de cada operação societária, o direito de preferência (gênero) pode ser estruturado de várias maneiras (espécies) (6), sendo que as mais comumente percebidas serão aqui identificadas como direito de preferência puro, direito de primeira oferta (first offer) e direito de primeira recusa (first refusal). Embora essas espécies possuam finalidades semelhantes, são desencadeadas consequências práticas peculiares a partir de cada uma.
No âmbito do direito de preferência puro, o gatilho para a produção de efeitos da cláusula é a oferta de Terceiro Interessado na aquisição da participação societária de determinado(s) sócio(s) (7). Assim, por força do direito de preferência, deverá o Sócio Alienante dar a oportunidade de os Sócios Remanescentes cumprirem o negócio no lugar do Terceiro Interessado, com a igualdade de condições propostas por tal potencial adquirente.
Na prática, porém, a efetividade desse direito pode ser prejudicada, tendo em vista que não raro as ofertas para aquisição de participação societária são pactuadas com condições precedentes (como, por exemplo, a realização de due diligence) e/ou hipóteses de variação do preço das participações que são objeto da oferta, trazendo, assim, incertezas quanto ao valor e/ou modelo da operação societária pretendida, incertezas essas que podem prejudicar a capacidade ou o apetite do Sócio Remanescente em exercer o direito de preferência (8).
Uma possibilidade para mitigação dessas incertezas é a tentativa de parametrizar contratualmente o exercício do direito. Outra possibilidade é, ainda, disciplinar direitos alternativos ao direito de preferência puro, mas que também sirvam para, de alguma forma, proteger o Sócio Remanescente.
No contexto desses direitos alternativos é que se tem os direitos de primeira oferta (first offer) e de primeira recusa (first refusal), que são ativados a partir da intenção do Sócio Alienante em alienar a sua participação societária, e não do interesse de terceiros alheios à sociedade em adquiri-la (9).
No caso do direito de primeira oferta, o Sócio Alienante deve comunicar a sua intenção de alienar suas quotas ou ações, de maneira inédita, aos demais sócios signatários do pacto, de modo que esses Sócios Remanescentes possam decidir se irão realizar uma primeira oferta pelas ações ou quotas a serem alienadas – estipulando, também, o preço e as condições para celebração do contrato de compra (10). Caso os Sócios Remanescentes não realizem uma proposta de aquisição ou caso o Sócio Alienante não tenha o interesse de proceder com o negócio pelo valor ou condições ofertadas pelos Sócios Remanescentes, poderá o Sócio Alienante oferecer as suas participações a Terceiros Interessados, desde que o faça por preços e condições melhores que os oferecidos na primeira oferta. Neste sentido, observa-se que a first offer dos Sócios Remanescentes acaba por estipular o valor mínimo pelo qual o Sócio Alienante poderá vender a sua participação societária (11).
Na configuração das cláusulas de primeira recusa, por outro lado, deverá o Sócio Alienante, independentemente de ter recebido eventual oferta de Terceiro Interessado, informar aos titulares do direito de preferência sobre o seu objetivo de alienação de quotas ou ações, indicando o preço e estabelecendo as condições do negócio que pretende pactuar (12). Caso os Sócios Remanescentes tenham o interesse de adquirir as ações nos termos determinados pelo Sócio Alienante, a alienação poderá ser realizada entre os membros do quadro societário. Contudo, caso os Sócios Remanescentes recusem a oferta feita pelo Sócio Alienante, poderá o Sócio Alienante oferecer as suas quotas ou ações pelas mesmas condições a eventuais Terceiros Interessados.
Ambas as alternativas não conseguem criar em favor dos Sócios Remanescentes uma proteção vinculativa como a que é criada pelo direito de preferência puro. É que, por esse direito, o Sócio Alienante fica obrigado a fazer negócio com os Sócios Remanescentes caso eles igualem a proposta do Terceiro Interessado; já nos direitos de primeira oferta ou primeira recusa, não há obrigatoriedade de nenhum dos lados: o Sócio Alienante não é obrigado a aceitar a proposta feita pelos Sócios Remanescentes e os Sócios Remanescentes não são obrigados a aceitar a proposta do Sócio Alienante.
Como se vê, existem várias modelagens possíveis e não existe resposta para a pergunta: qual é melhor? Cabe às partes, junto aos seus assessores, definir qual é o caminho mais adequado ao caso concreto, levando em conta os prós e contras de cada opção.
Letícia Camargos
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Pedro Ernesto Rocha
Coordenador da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) WAISBERG, Ivo. Direito de preferência na alienação de ações. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Comercial. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida (coord. De tomo). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. p. 8.
(2) LOBO, Jorge Joaquim. Direitos dos acionistas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. p. 201.
(3) Importante notar que em relação as sociedades empresárias limitadas, é estabelecido no artigo 1.057 do Código Civil que na omissão do contrato social, os sócios poderão alienar suas quotas a outro(s) sócio(s), independentemente da manifestação dos demais, ou a terceiros, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social. Já no âmbito das sociedades anônimas, o artigo 36 da Lei das S.A. autoriza que o estatuto da sociedade anônima fechada imponha limitações à circulação das ações nominativas, desde que sejam reguladas minuciosamente as regras e não seja totalmente impedida a negociação dos ativos. Sobre o assunto, ver GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 389.
(4) CRAVEIRO, Mariana Conti. Contrato entre Sócios: Interpretação e Direito Societário. São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, 2013. p. 103.
(5) A própria Lei das S.A. sugere isso, ao no caput do artigo 118 da Lei das S.A. que “Os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de suas ações, preferência para adquiri-las”.
(6) WAISBERG, Ivo. Direito de preferência na alienação de ações. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Comercial. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida (coord. De tomo). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. p. 3.
(7) Independentemente da oferta ser originada da prospecção do Sócio Alienante ou da espontaneidade do Terceiro Interessado.
(8) Sob o ponto de vista do Terceiro Interessado, o direito de preferência significa que a sua oferta ainda passará pelo escalão do direito de preferência, o que poderá ocasionar em maiores custos ou morosidade na operação.
(9) CARVALHOSA, Modesto. Acordo de acionistas: homenagem a Celso Barbi Filho. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 287.
(10) CRAVEIRO, Mariana Conti. Contrato entre Sócios: Interpretação e Direito Societário. São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, 2013. p. 99.
(11) CRAVEIRO, Mariana Conti. Contrato entre Sócios: Interpretação e Direito Societário. São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, 2013. p. 99.
(12) CRAVEIRO, Mariana Conti. Contrato entre Sócios: Interpretação e Direito Societário. São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, 2013. p. 99-100.