A pediatra, livro de Andrea Del Fuego, e Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, filme de Daniel Scheinert e Daniel Kwan
Katryn Rocha
A pediatra
Em A pediatra de Andrea Del Fuego, livro finalista da 64ª edição do Prêmio Jabuti na categoria “Romance Literário”, acompanhamos a peculiar neonatologista Cecília, uma pediatra que carece de espírito materno, nada afeita a crianças e que busca não criar laços com os pacientes e suas famílias, distante de sua profissão de tal forma que a percebemos como o oposto esperado para uma médica de sua especialidade.
A medicina era, entretanto, um caminho natural para Cecília, pela comodidade de seguir os passos do pai médico, que não só a incentivou, como lhe deu tudo, do carro ao consultório, definindo assim sua carreira pelo conforto de não ter que se esforçar.
Apesar de sua frieza com os pacientes, ela tem um consultório bem-sucedido, mas aos poucos se vê perdendo espaço para um pediatra humanista, que trabalha com doulas, parteiras e até acompanha partos domiciliares.
Cecília fará, então, um mergulho investigativo na vida das mulheres que seguem o caminho do parto natural e da medicina alternativa, práticas que despreza. Paralelamente, ela vive uma relação com um homem casado, cujo filho ela acompanhou o nascimento como neonatologista. E é esse menino que irá despertar sentimentos nunca experimentados pela pediatra.
Em seu cotidiano agitado, porém vazio de sentido, percebemos o desamor e a falta de vivacidade que compõem a vida da personagem. Cecília é uma mulher que se debate entre a busca por sentir e evitar conexões, enquanto o mundo ao redor parece girar sem perceber o seu desespero. Na narrativa ácida e ágil, em primeira pessoa, sem filtro e com humor mordaz, percebemos a dor e abandono encobertos em arrogância. De forma hilária e cruel, Andrea escreve divinamente, nos fazendo cativos dessa pediatra canalha.
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo
Em Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, filme dirigido por Daniel Scheinert e Daniel Kwan, acompanhamos Evelyn Wang, interpretada por Michelle Yeoh (O Tigre e o Dragão e Memórias de uma Gueixa).
Evelyn, que deixou a China ainda jovem, vive em seu pequeno universo de estresse e frustração. Seu pai (James Hong), que praticamente a deserdou quando ela se casou com seu marido excessivamente otimista Waymond (Ke Huy Quan), está visitando para comemorar seu aniversário; a inspetora da Receita Federal, Deirdre (uma hilária Jamie Lee Curtis) acusa a lavanderia de fraude; Waymond pretende pedir o divórcio, pois segundo ele é a única maneira de chamar a atenção de sua esposa; a filha, Joy (Stephanie Hsu), tem problemas de autoestima e uma namorada chamada Becky (Tallie Medel), evidenciando que Evelyn não sabe como lidar com a angústia adolescente de Joy ou sua sexualidade.
A protagonista, possivelmente, como é apontado em dado momento do filme, está vivendo a pior versão dela mesma, mas isso não significa que Evelyn não tentou escapar da monotonia de sua vida. Descobrimos que ela queria ser uma treinadora de canto e uma autora, entre outros interesses, que se tornaram apenas hobbies ao invés de carreiras.
A vida de Evelyn, entretanto, muda quando uma versão de Waymond aparece e diz que ela é apenas uma das muitas Evelyns, mas a única que pode derrotar um poderoso vilão chamado Jobu Tupaki, que pode destruir todos os universos. E há muitos universos, pois a premissa é de que cada escolha que Evelyn (e todos os outros) fez em sua vida, involuntariamente, desabrocham em novos universos.
Os diretores transformam Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo em uma enxurrada frenética e verdadeiramente ridícula de probabilidades e saltos no multiverso. Qualquer coisa que você possa imaginar, os diretores também pensaram e colocaram nesse filme. O que nos faz questionar se o filme de fato tem que ser tão louco quanto é para provar seu ponto: quando tudo é possível, o que realmente importa? No caminho, os diretores exploram a desesperança da depressão, os pequenos milagres que realmente fazem a vida valer a pena, como os atos de bondade podem ser um recurso extraordinário e – mais apropriado para este filme – como não há problema em ser uma bagunça.
Enquanto as sequências de ação e os voos são uma grande parte da diversão, elas não são realmente o ponto. O filme é uma viagem pelo multiverso, mas no fundo é um drama doméstico agridoce, uma comédia conjugal, uma história de luta de imigrantes e uma balada cheia de dor de amor entre mãe e filha.
Percebemos que Evelyn e as circunstâncias de sua vida já são interessantes. A chave para “tudo” é que as prolíferas linhas de tempo e possibilidades, embora cheias de perigos e tolices, não representam tanto uma alternativa à monotonia da realidade, mas são uma extensão de sua complexidade.
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é um filme que entrega uma experiência completa, pois ele consegue abordar tudo a que ele se propõe de maneira muito bem executada e é exatamente como se intitula.
Katryn Rocha
Auxiliar de Comunicação do VLF Advogados