Ações preferenciais e aquisição do direito de voto: o caso da Petrobras
Paulo Vítor Ângelo
Importantes veículos de comunicação do país divulgaram, nos últimos dias, notícias relacionadas à possibilidade de os titulares de ações preferenciais da Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobras (“Petrobras”) adquirirem o direito ao voto nas próximas deliberações sociais, na hipótese de não pagamento de dividendos referentes ao exercício de 2014. Lado outro, fontes não reveladas ligadas à companhia dariam como certa a impossibilidade da aquisição deste direito pelos preferencialistas.
Afinal, eventual não recebimento de dividendos faria com que os acionistas preferenciais da Petrobras adquirissem o direito de voto, colocando em cheque o controle exercido pela União Federal na estatal (1)? A polêmica tem origem na disposição do art. 111 da Lei nº 6.404/76, a conhecida Lei das Sociedades por Ações (“LSA”) (2).
Segundo o dispositivo, “o estatuto poderá deixar de conferir às ações preferenciais algum ou alguns dos direitos reconhecidos às ações ordinárias, inclusive o de voto, ou conferi-lo com restrições, observado o disposto no artigo 109”. No entanto, dispõe em seu §1º que “as ações preferenciais sem direito de voto adquirirão o exercício desse direito se a companhia, pelo prazo previsto no estatuto, não superior a 3 (três) exercícios consecutivos, deixar de pagar os dividendos fixos ou mínimos a que fizerem jus, direito que conservarão até o pagamento, se tais dividendos não forem cumulativos, ou até que sejam pagos os cumulativos em atraso”. A mesma hipótese se aplicaria às ações preferenciais com direito de voto restrito, caso em que seriam suspensas as limitações impostas ao exercício desse direito.
Não obstante sua singular importância, o direito ao voto não é incluído dentre os “direitos essenciais” do acionista, elencados no supracitado art. 109 da LSA. São eles o direito à participação nos lucros sociais, o direito à participação no acervo da companhia em caso de liquidação, o direito à fiscalização dos negócios sociais, o direito de preferência na subscrição de ações, partes beneficiárias conversíveis em ações, debêntures conversíveis em ações e bônus de subscrição, e o direito de retirar-se da sociedade nos casos previstos em lei. Isso ocorre justamente em virtude da possibilidade de a companhia deixar de conferir o direito ao voto (ou conferi-lo com restrições) a certas classes de ações preferenciais, estabelecendo-se distinção entre os acionistas efetivamente interessados no controle da companhia, titulares das ações ordinárias, e os acionistas interessados no mero recebimento de retorno financeiro sobre o seu investimento, titulares das ações preferenciais sem direito ao voto ou com direito de voto restrito.
Entretanto, para a supressão ou a imposição de restrições ao direito de voto – o qual, salvo menção expressa e pormenorizada no estatuto, é extensível a todas as ações da companhia –, as ações preferenciais recebem em contrapartida determinados privilégios especiais ou vantagens patrimoniais não conferidas às ações ordinárias. São comuns, nesse sentido, os chamados “dividendos prioritários”, fixos ou mínimos, cumulativos ou não (LSA, art. 17, I) (3). Consistem em frações dos lucros da companhia que, em observância à respectiva previsão estatutária, serão conferidos às ações preferenciais antes que quaisquer outros lucros sejam atribuídos às ações ordinárias (4).
Há, assim, uma espécie de troca, através da qual as restrições impostas às ações preferenciais em seus direitos políticos são compensadas pelo recebimento de vantagens patrimoniais. É por essa razão que, frustrado o recebimento dos dividendos prioritários (fixos ou mínimos), emergirá o direito de voto ao acionista preferencial, que, desta feita, poderá influir na política da companhia e na aprovação dos atos de seus administradores, “visando a remover os obstáculos à realização do objetivo econômico da companhia, que é o de produzir lucros e distribuí-los aos acionistas” (5). De se notar, no entanto, que o preceito contido no art. 111 da LSA não objetiva simplesmente impor o pagamento dos dividendos prioritários a qualquer custo. Com efeito, não estando a companhia em liquidação, os dividendos, mesmo fixos ou cumulativos, não podem ser distribuídos em prejuízo do capital social (LSA, art. 17, §3º). O que se pretende é o restabelecimento dos direitos políticos inerentes às ações preferenciais diante do não recebimento dos benefícios patrimoniais que lhe haviam sido outorgados como contrapartida à restrição. Ademais, vale pontuar que os “dividendos prioritários” não se confundem com os “dividendos obrigatórios” (LSA, art. 202), conquanto estes representem a parcela do lucro líquido do exercício obrigatoriamente atribuível aos acionistas, e aqueles, a contrapartida de viés econômico garantida às ações preferenciais pela supressão de direitos atribuídos às ações ordinárias.
O estatuto social pode estabelecer o prazo de até 3 (três) exercícios consecutivos sem o recebimento dos dividendos prioritários fixos ou mínimos para que o acionista preferencial adquira o direito ao voto. Na omissão do estatuto, entretanto, o direito de voto emergirá imediatamente (6), a partir: (a) da verificação da inexistência de lucros distribuíveis nas demonstrações financeiras da companhia; (b) da declaração do não pagamento dos dividendos pela assembleia geral, ou (c) do decurso do prazo para o pagamento dos dividendos sem a sua efetivação – o que primeiro vier a ocorrer (7).
Para que sejam admitidas à circulação no mercado de valores mobiliários, as ações preferenciais sem direito ao voto ou com restrições ao exercício desse direito devem preencher requisitos ainda mais rígidos no que tange às preferências ou vantagens atribuídas (LSA, art. 17, §1º) (8). Nesse sentido, o estatuto social da Petrobras incorpora as disposições do art. 17, §1º, I, da LSA, estabelecendo, em seu art. 5º, §2º, que as ações preferenciais “terão prioridade no caso de reembolso do capital e no recebimento dos dividendos, no mínimo, de 5% (cinco por cento) calculado sobre a parte do capital representada por essa espécie de ações, ou de 3% (três por cento) do valor do patrimônio líquido da ação, prevalecendo sempre o maior, participando, em igualdade com as ações ordinárias, nos aumentos do capital social decorrentes de incorporação de reservas e lucros”. Adicionalmente, dispõe no §3º do dispositivo em comento que as ações preferenciais “participarão, não cumulativamente, em igualdade de condições com as ações ordinárias, na distribuição dos dividendos, quando superiores ao percentual mínimo que lhes é assegurado no parágrafo anterior”.
De se notar, ante o exposto, que a hipótese de não pagamento dos dividendos prioritários – mínimos e não cumulativos – devidos aos acionistas preferenciais da Petrobras, conforme disposto no art. 5º, §§ 2º e 3º de seu estatuto social, somada à ausência de previsão estatutária quanto ao prazo para a aquisição do direito ao voto pelos preferencialistas, conduziria, sem necessidade de maiores discussões, à sua aquisição imediata.
Entretanto, como não poderia deixar de ser, a questão acaba por abarcar entornos mais controversos, já que o exercício do direito de voto na Petrobras encontra regulamentação em lei especial. Nesse sentido, a Lei nº 9.478/97 (conhecida como a “Nova Lei do Petróleo”, que revogou o Decreto-lei nº 2.004/53), com fundamento em princípios de ordem pública, como a preservação do interesse nacional, dispõe em seu art. 62, parágrafo único (9), que o capital da Petrobras “[...] é dividido em ações ordinárias, com direito de voto, e ações preferenciais, estas sempre sem direito de voto [...]”. Assim, o argumento de que a aquisição do direito ao voto prevista no §1º do art. 111 da LSA não se aplicaria aos acionistas preferenciais da estatal vai conquistando defensores, encontrando amparo, inclusive, na doutrina (10).
Após a divulgação tardia de seu balanço patrimonial auditado, os acionistas da Petrobras enfim deliberarão pela aprovação das demonstrações financeiras referentes ao exercício de 2014, em assembleia geral extraordinária designada para o dia 25 de maio de 2015. E a discussão quanto à possibilidade de atribuição de direito de voto aos acionistas preferenciais diante do não pagamento dos dividendos prioritários, inevitavelmente, será utilizada como instrumento de pressão em favor dos interesses dos preferencialistas. O certo é que a questão é polêmica, e trará desdobramentos relevantes nos próximos dias.
Para maiores informações sobre o assunto, consulte a equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados.
Paulo Vítor Ângelo
Advogado da equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados.
(1) Do portal da BM&FBovespa, extrai-se a informação de que a União Federal é titular de 50,26% das ações ordinárias nominativas da Petrobras (correspondentes a 28,67% do capital social), o que, em condições normais, já lhe garante o exercício do poder de controle. Outros entes vinculados à União Federal, como BNDES, BNDESPar e Previ, são também titulares de relevantes percentuais de participação na estatal (dentre ações ordinárias e ações preferenciais). Entretanto, se somadas, todas estas participações não correspondem a mais de 50% do capital social da companhia.
(2) Art. 111. O estatuto poderá deixar de conferir às ações preferenciais algum ou alguns dos direitos reconhecidos às ações ordinárias, inclusive o de voto, ou conferi-lo com restrições, observado o disposto no artigo 109. §1º As ações preferenciais sem direito de voto adquirirão o exercício desse direito se a companhia, pelo prazo previsto no estatuto, não superior a 3 (três) exercícios consecutivos, deixar de pagar os dividendos fixos ou mínimos a que fizerem jus, direito que conservarão até o pagamento, se tais dividendos não forem cumulativos, ou até que sejam pagos os cumulativos em atraso. §2º Na mesma hipótese e sob a mesma condição do §1º, as ações preferenciais com direito de voto restrito terão suspensas as limitações ao exercício desse direito. §3º O estatuto poderá estipular que o disposto nos §§ 1º e 2º vigorará a partir do término da implantação do empreendimento inicial da companhia. (LSA, art. 111).
(3) Art. 17. As preferências ou vantagens das ações preferenciais podem consistir: I - em prioridade na distribuição de dividendo, fixo ou mínimo; [...] (LSA, art. 17, I).
(4) “O traço em comum entre as ações preferenciais com dividendos fixos e aquelas com dividendos mínimos é que ambas têm o direito à prioridade no recebimento desses dividendos. Ou seja, ambas têm a garantia de que somente depois de lhes serem assegurados os dividendos mínimos ou fixos é que o eventual saldo remanescente, após a atribuição dos dividendos prioritários devidos a todas as classes de ações preferenciais, será destinado ao pagamento dos dividendos das ações ordinárias." (CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas, 2º volume: artigos 75 a 137 – 4. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 413). “O traço em comum entre as ações preferenciais com dividendos fixos e aquelas com dividendos mínimos é que ambas têm prioridade no recebimento desses dividendos, ou seja, ambas têm a garantia de que somente depois de lhes serem assegurados os dividendos mínimos ou fixos é que o eventual saldo remanescente será destinado ao pagamento dos dividendos das ações ordinárias.” (EIZIRIK, Nelson. A lei das S/A comentada. Volume I – arts. 1º a 120. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 157/158).
(5) CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas, 2º volume: artigos 75 a 137 – 4. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 416.
(6) “Se o estatuto for omisso, o acionista adquire o direito de voto de imediato." (CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas, 2º volume: artigos 75 a 137 – 4. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 417). “Na omissão do estatuto, caracterizado o fato gerador da aquisição do direito ao voto – a não distribuição de dividendos fixos ou mínimos –, o acionista pode exercê-lo de imediato. Com efeito, a norma do §1º, no que se refere ao prazo, não é supletiva, ou de tolerância, mas restritiva, ao estabelecer que é limitada a discricionariedade da companhia na fixação estatutária do período máximo de tempo.” (EIZIRIK, Nelson. A lei das S/A comentada. Volume I – arts. 1º a 120. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 635/636).
(7) “Cabe indagar quando se verifica o fato gerador do direito ao voto, seja para computa-lo em exercício futuro, seja para exercê-lo desde logo, na omissão do estatuto. Seria a declaração do não-pagamento de dividendos pela assembleia geral ou a mera verificação, no balanço, da inexistência de lucros distribuíveis? Cremos que uma hipótese não exclui a outra, instaurando-se o direito a partir do primeiro fato gerador." (CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas, 2º volume: artigos 75 a 137 – 4. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 418). “O fato gerador da aquisição do direito de voto é a declaração do não pagamento do dividendo fixo ou mínimo pela assembleia ou a verificação da inexistência de lucros a serem distribuídos, o que ocorrer antes. Também constitui fato gerador o não pagamento dentro do prazo legal (60 dias após a declaração, ou outro prazo que venha a ser fixado pela assembleia geral, sempre dentro do exercício social).” (EIZIRIK, Nelson. A lei das S/A comentada. Volume I – arts. 1º a 120. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 637).
(8) §1º Independentemente do direito de receber ou não o valor de reembolso do capital com prêmio ou sem ele, as ações preferenciais sem direito de voto ou com restrição ao exercício deste direito, somente serão admitidas à negociação no mercado de valores mobiliários se a elas for atribuída pelo menos uma das seguintes preferências ou vantagens: I - direito de participar do dividendo a ser distribuído, correspondente a, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) do lucro líquido do exercício, calculado na forma do art. 202, de acordo com o seguinte critério: (a) prioridade no recebimento dos dividendos mencionados neste inciso correspondente a, no mínimo, 3% (três por cento) do valor do patrimônio líquido da ação; e (b) direito de participar dos lucros distribuídos em igualdade de condições com as ordinárias, depois de a estas assegurado dividendo igual ao mínimo prioritário estabelecido em conformidade com a alínea a; ou II - direito ao recebimento de dividendo, por ação preferencial, pelo menos 10% (dez por cento) maior do que o atribuído a cada ação ordinária; ou III - direito de serem incluídas na oferta pública de alienação de controle, nas condições previstas no art. 254-A, assegurado o dividendo pelo menos igual ao das ações ordinárias. (LSA, art. 17, §1º).
(9) Art. 62. A União manterá o controle acionário da PETROBRÁS com a propriedade e posse de, no mínimo, cinqüenta por cento das ações, mais uma ação, do capital votante. Parágrafo único. O capital social da PETROBRÁS é dividido em ações ordinárias, com direito de voto, e ações preferenciais, estas sempre sem direito de voto, todas escriturais, na forma do art. 34 da Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976. (Lei nº 9.478/97, art. 62)
(10) “[...] é forçoso admitir que o preceito de instauração do direito de voto por ausência de pagamento de dividendos não se aplica às preferenciais emitidas por companhias sujeitas à legislação especial sobre a matéria. Isso ocorre com as preferenciais emitidas pelas instituições financeiras – Lei n. 5.710, de 1971. Também com as emitidas pela Petrobras – ex vi do que, a respeito, dispõe o Decreto-Lei n. 688, de 1969.” (CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas, 2º volume: artigos 75 a 137 – 4. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 420).