Tokenização, Marco Legal da Securitização e securitização de recebíveis
Alexandre Bianchini e Fernanda Vidigal
Imagens de macacos estilizados vendidas por cifras milionárias como non-fungible tokens (“NFT”), clubes de futebol que oferecem ao mercado tokens representativos de parte do valor da venda de jogadores, negociações virtuais de ouro físico, expansão das criptomoedas etc., os ativos digitais (criptoativos) e a chamada “tokenização” vêm ganhando tração como solução de demandas empresariais (1).
Nesse contexto, diversas empresas vislumbram a possibilidade de captar recursos e negociar seus ativos de forma digital, instantânea e com baixo custo, valendo-se da tecnologia dos tokens. Mas, afinal, o que isso quer dizer de fato?
Um token é um ativo digital que representa, em uma rede de blockchain (2), um bem ou direito de um determinado sujeito.
Assim, a tokenização é o procedimento que cria um ativo digital a partir de outro previamente existente, de modo que cada token representa a titularidade do bem ou do direito original e se torna objeto de negociação digitalmente (3). No caso dos NFT, por exemplo, o token garante o direito de propriedade sobre uma imagem virtual. Ainda, na hipótese dos clubes de futebol, os tokens representam os direitos sobre percentuais das receitas auferidas na venda de determinado jogador.
A tokenização apresenta algumas características marcantes: permite atingir maiores índices de liquidez, considerando que os tokens podem ser emitidos a partir de frações dos ativos que os lastreiam, reduzindo preços e facilitando o acesso por mais interessados; e, principalmente, tem custos reduzidos, porque geralmente é realizada apenas por meio das tokenizadoras (que disponibilizam as ferramentas necessárias ao funcionamento dos tokens), sem a atuação de intermediários (4).
É curioso observar que os pontos de vantagem acima listados atualmente não são limitados por regulação própria, fato que desburocratiza e facilita o uso da tokenização como modelo de negócio.
Sem dúvida, a intersecção entre direito e tecnologia é um dos maiores desafios regulatórios contemporâneos, já que naturalmente o direito não consegue acompanhar a agilidade disruptiva da tecnologia. Nesse sentido, a regulação vem evoluindo a partir do desencadeamento de crises e com o aumento do receio do mercado especializado (5).
Com o avanço da tokenização, notou-se sua semelhança com o conhecido conceito de securitização: procedimento de transformação de ativos financeiros (geralmente direitos creditórios) em títulos negociáveis no mercado de capitais, o que é feito com a intermediação de uma companhia securitizadora (6).
Tradicionalmente, a securitização permitiu às sociedades captar recursos a partir da emissão e negociação de valores mobiliários representativos de créditos imobiliários ou agrícolas, os Certificados de Recebíveis Imobiliários ou do Agronegócio (conhecidos como “CRI” e “CRA”, respectivamente).
O uso da securitização é bastante consolidado no mercado, e recentemente foi estimulado com a promulgação da Lei nº 14.430/22 (“Marco Legal da Securitização”), que aumentou o escopo dos ativos securitizáveis, não mais apenas imobiliários ou agrícolas, e trouxe regras visando à redução de alguns custos envolvidos na emissão dos títulos securitizados (7).
Diante da similaridade conceitual, considera-se que a desburocratização trazida pela tokenização poderia estimular ainda mais a securitização, já que seria possível tokenizar os títulos securitizados (8).
No Brasil, apesar de existirem alguns projetos de lei, apenas a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) se debruçou sobre os temas da tokenização e da securitização em termos normativos, através do Parecer de Orientação CVM 40 (“Parecer”) (9).
No Parecer, a CVM determinou que um token será considerado valor mobiliário quando for a representação digital de algum dos valores mobiliários previstos no Marco Legal da Securitização ou no artigo 2º da Lei nº 6.385/76 (“Lei do Mercado de Capitais”) (10). E o Marco Legal da Securitização determina, em seu artigo 20, §1º, que “quando ofertados publicamente ou admitidos à negociação em mercado regulamentado de valores mobiliários”, os Certificados de Recebíveis (que são os direitos creditórios securitizados) serão considerados valores mobiliários.
A CVM, portanto, formalizou o entendimento de que um token representativo de um Certificado de Recebível considerado como valor mobiliário à luz do Marco Legal de Securitização estará sujeito à regulação inerente a todos os valores mobiliários, o que, por consequência, burocratiza a emissão de tokens no contexto da securitização (11).
Ou seja, é preciso perceber que dentro do Marco Legal de Securitização há duas formas distintas de interpretar os Certificados de Recebíveis à luz do Parecer: uma, representa um crédito e não é objeto de oferta pública ou de negociação em mercado regulamentado; e outra, também representa um crédito, mas é objeto de oferta pública ou de negociação em mercado regulamentado.
Para a primeira forma (a não ofertada publicamente e não negociada em mercado regulamentado), de fato, a tokenização do Certificado de Recebíveis poderia reduzir seus custos, desburocratizar o procedimento e aumentar as possibilidades de negociação. Já na segunda forma, a tokenização do Certificado de Recebíveis é igualada – em termos regulatórios – aos demais valores mobiliários, o que vincula seus tokens às restrições regulatórias comuns a tais valores.
Como visto, a tokenização tem o intuito de tornar processos mais eficientes e, assim, menos custosos às partes envolvidas, e, por isso, é preciso cuidado para que a opção regulatória não (in)evolua para criar obstáculos à aplicação das inovações tecnológicas e acabe representando um desestímulo aos seus usos. Cumpre refletir se a aplicação de regras já existentes e desenvolvidas para o mercado tradicional é, de fato, a melhor opção para a regulação de ferramentas novas.
Alexandre Bianchini
Advogado da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Fernanda Vidigal
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) Como exemplo, conferir (i) a emissão de token pelo Cruzeiro Esporte Clube: https://valorinveste.globo.com/mercados/cripto/noticia/2022/02/13/token-do-cruzeiro-vai-pagar-r-1-milhao-em-dividendos-com-venda-de-jogadores-palmeiras-corinthians-flamengo-bragantino.ghtml; e (ii) emissão de debêntures tokenizadas pela Salinas Participações: https://valorinveste.globo.com/mercados/cripto/noticia/2022/06/01/tokenizacao-chega-ao-mercado-de-capitais-com-emissao-de-debenture-e-fidc.ghtml. Acesso em: 20 nov. 2022.
(2) MOREIRA, Arthur Salles de Paula. Non-Fungible Token (NFT): Lições Preliminares Sobre sua Natureza Jurídica. In: PARENTONI, Leonardo (coord.); FERRARI, Giovanni Carlo Batista; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; ALVES, Tárik César Oliveira e (orgs.). Direito, Tecnologia e Inovação: estudos de casos. v. IV. Belo Horizonte: Centro DTIBR, 2022. p. 173.
(3) UZSOKI, David. Tokenization of Infrastructure. Tokenization of Infrastructure: A Blockchain-Based Solution to Financing Sustainable Infrastructure, International Institute for Sustainable Development (IISD), 2019, p. 1-3. JSTOR: http://www.jstor.org/stable/resrep22004.3. Accessed in: 10 nov. 2022.
(4) Além disso, a tokenização utiliza da rede de blockchain, que é uma rede descentralizada, constantemente atualizada pelo próprio uso e onde as transações são registradas de maneira anônima. Assim, os tokens são registrados e validados na blockchain, garantindo a validação de seus termos e segurança aos seus proprietários de maneira eficiente. Para saber mais sobre blockchain, recomenda-se: BARBOSA, Mafalda Miranda. Blockchain e responsabilidade civil: inquietações em torno de uma realidade nova. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, ano 1, v. 1, p. 206-244, jan. 2019. disponível em: https://revistadireitoresponsabilidade.pt/2019/blockchain-e-responsabilidade-civil-inquietacoes-em-torno-de-uma-realidade-nova-mafalda-miranda-barbosa/. Acesso em: 10 nov. 2022.
(5) Vale destacar que a não regulação é uma opção institucional legítima, no entanto, para o caso dos tokens, principalmente para os ligados ao mercado financeiro, há indicações de que será necessário algum nível de aperto regulatório. Neste sentido, destaca-se a recente crise desencadeada pelo colapso da corretora de criptomoedas denominada “FTX”, com atuação global e de sede nas Bahamas. Em resumo, a FTX emitiu um token próprio, FTT, para ser adquirido por clientes. No entanto, o maior comprador do FTT era um fundo de investimento controlado pela própria corretora (“Fundo Alameda”), que utilizava os tokens como garantia de outras operações no mercado americano. Assim seguiu-se sem qualquer supervisão regulatória, até que o token da corretora apresentou uma desvalorização relevante, levando à quebra das garantias apresentadas pelo Fundo Alameda e à insolvência do grupo FTX, que, inclusive, chegou a bloquear os recursos de seus clientes. Sobre o tema, conferir: https://www.nytimes.com/2022/11/11/business/ftx-bankruptcy.html; https://www.theglobeandmail.com/business/commentary/article-ftx-crypto-crisis-canada-regulation/. Acesso em: 20 nov. 2022.
(6) O termo “securitização” é derivado de “securities”, o conceito norte-americano de “valores mobiliários”, que, apesar de amplamente debatido, pode ser definido como um instrumento jurídico objeto de oferta pública ao mercado, representativo de interesses comuns com os agentes (investidores, gestores, administradores etc.) envolvidos e que gere a expectativa ao titular de auferir retornos financeiros, além daqueles explicitamente definidos na Lei do Mercado de Capitais. Sobre o tema, conferir: (i) MINETTO, João Paulo; NETO, Henrique L. Alexandre. Securitização. In: Novos Temas de Direito e Corporate Finance. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 287; (ii) MATTOS FILHO, Ary Oswaldo. Direito dos Valores Mobiliários. v. 1. Tomo 1. Rio de Janeiro: FGV, 2015; e (iii) ALVARES, Jefferson Siqueira de Brito. O Atual Conceito de Valor Mobiliário. Revista de Direito Mercantil. São Paulo: Editora Malheiros, n. 142. p. 203-247, abr.-jun. 2006.
(7) Cf. parágrafo único do art. 18 do Marco Legal da Securitização, que possibilita a securitização de qualquer direito creditório: “É considerada operação de securitização a aquisição de direitos creditórios para lastrear a emissão de Certificados de Recebíveis ou outros títulos e valores mobiliários perante investidores, cujo pagamento é primariamente condicionado ao recebimento de recursos dos direitos creditórios e dos demais bens, direitos e garantias que o lastreiam”. Cf. também o artigo 35 do Marco Legal da Securitização, que permite a dedução das despesas de captação no procedimento de securitização da base de cálculo do PIS/Cofins: “A Lei nº 9.718, de 27 de novembro de 1998, passa a vigorar com as seguintes alterações: ‘Art. 3º § 8º Na determinação da base de cálculo da Contribuição para o PIS/Pasep e a Cofins, poderão ser deduzidas as despesas de captação de recursos incorridas pelas pessoas jurídicas que tenham por objeto a securitização de créditos’ […].”
(8) Como pode ser visto em: https://uqbar.com.br/artigo/tokenizacao-de-ativos-uma-nova-forma-de-ingresso-no-mercado-de-capitais-14264/5771; https://portaldobitcoin.uol.com.br/tokenizacao-de-ativos-reais-como-desmistificar-e-aplicar-em-negocios-com-seguranca-opiniao/; e https://monitormercantil.com.br/tokenizacao-revoluciona-mercado-financeiro/. Acesso em: 25 nov. 2022.
(9) O Parecer está disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/pareceres-orientacao/pare040.html. Vide os Projetos de Lei nº 3.825/19 e nº 4.207/20, respectivamente disponíveis em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137512 e https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/144036. Acesso em: 20 nov. 2022.
(10) Deve-se mencionar que em 2021, a CVM publicou a Resolução CVM 60/21, que também intenta fomentar a securitização no mercado de capitais brasileiro e cria requisitos de Governança Corporativa para as companhias securitizadoras. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/resolucoes/resol060.html. Acesso em: 14 nov. 2022.
(11) Atualmente as Ofertas Públicas de Valores Mobiliários são regidas pelas Instruções CVM 400 e 476, até o início da entrada em vigor da Resolução CVM 160, definida para 2 de janeiro de 2023.