Comportamento contraditório na relação contratual afronta o princípio da boa-fé objetiva, reafirma STJ
Arthur Batista
Em recente decisão, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), por meio do julgamento do Recurso Especial nº 1.995.100 - GO (“Recurso”), reafirmou que a violação do princípio da boa-fé objetiva deve ser combatido, especialmente quando ocorre comportamento contraditório, isto é, “inesperado, que causa surpresa na outra parte” (1).
A seguir serão apontados alguns dos principais aspectos jurídicos relacionados ao tema discutido no Recurso para que, na sequência, sejam apresentados os detalhes dessa decisão.
1) Princípio da boa-fé objetiva e seus deveres anexos
O princípio da boa-fé está presente no art. 422 (2) do Código Civil e, para melhor entendimento, divide-se em: (i) princípio da boa-fé subjetiva e (ii) princípio da boa-fé objetiva.
A boa-fé subjetiva, segundo Alinne Arquette Leite Novais (3), “corresponde ao estado psicológico da pessoa, à sua intenção, ao seu convencimento de estar agindo de forma a não prejudicar outrem na relação jurídica”.
Já a boa-fé objetiva está ligada diretamente ao dever de agir em conformidade com os padrões socioculturais. Trata-se, portanto, de regra de conduta a ser seguida pelas partes de um contrato. Desse comportamento determinado pela boa-fé objetiva, decorrem outras obrigações conexas, como os deveres, entre as partes, de lealdade, transparência e colaboração, além de respeito à legitima expectativa criada ou depositada na relação (4). Inclusive esse tema foi abordado em nosso Informativo VLF - 92/2022, de 30 de maio de 2022.
2) Vedação ao comportamento contraditório
De acordo com o art. 187 do Código Civil (5) comete ato ilícito aquele que “abusa” de seu direito, excedendo por meio de sua ação ou omissão, os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes.
Em razão disso, o comportamento contraditório não é admitido nas relações civis, especialmente nas relações contratualmente acordadas. Não se pode, em um contrato, comportar-se de forma a criar certa expectativa legítima à outra parte e, em seguida, agir de forma claramente oposta.
Aliás, a proibição do comportamento contraditório em contratos vem ganhando destaque com o passar dos anos, sendo o instituto chamado de “venire contra factum proprium” definido por Felipe Braga Netto como
o dever de não agir em contradição com os próprios atos. A aplicação da teoria pode ocorrer em situações negociais variadas. Por exemplo, quando uma parte, intencionalmente ou não, faz crer à outra que determinada formalidade não é necessária, incorrendo em contradição com seus próprios atos quando, mais tarde, pretende amparar-se nesse defeito formal para não cumprir sua obrigação (6).
O princípio da boa-fé (objetiva e subjetiva) e o instituto que dele decorre, o “venire contra factum proprium”, são aplicáveis a qualquer tipo de relação, especialmente nos contratos firmados entre empresas. No contexto empresarial, boa-fé corresponde à conformidade da conduta com o comportamento esperado para o mercado (7).
Assim, ainda que a decisão noticiada neste texto esteja relacionada ao caso em que há contrato de plano de saúde regido por normas de Direito de Consumidor, a análise desse entendimento colabora para a compreensão da interpretação atual do STJ sobre boa-fé de forma geral, tendo em vista que esse princípio é aplicável para além das relações de consumo.
3) A decisão do STJ
A decisão foi proferida no Recurso (8) interposto por operadora de convênios em saúde (“Operadora de Saúde”) que buscava a declaração de legalidade na notificação de encerramento contratual em razão de falta de pagamentos do plano de saúde pelo cliente. Essa correspondência foi enviada com aviso de recebimento (“AR”) para o endereço de cadastro do cliente, porém, o AR não foi assinado por ele.
Dentre outros pontos tratados nesse Recurso, destaca-se o comportamento contraditório da Operadora de Saúde ao notificar o cliente da rescisão do contrato em virtude de atrasos no pagamento, mesmo após ter negociado os débitos com este e recebido as 3 (três) parcelas em atraso.
O cliente, inclusive, realizou pagamentos após a data considerada como de rescisão na referida notificação pela Operadora de Saúde e esta, por sua vez, não se manifestou sobre o recebimento de valores após o suposto encerramento do contrato. Segundo a Operadora de Saúde, o pagamento foi realizado em um boleto emitido antes da rescisão contratual.
Segundo a Relatora,
a conduta de renegociar a dívida do titular do plano de saúde e, após notificá-lo da rescisão do contrato, receber o pagamento da mensalidade seguinte, constitui comportamento contraditório da operadora – ofensivo, portanto, à boa-fé objetiva – por ser incompatível com a vontade de extinguir o vínculo contratual, criando, no beneficiário, a legítima expectativa de sua manutenção.
Desta forma, o comportamento da Operadora de Saúde foi considerado contraditório e impossibilitou o reconhecimento da legalidade do encerramento contratual por falta de pagamentos por se tratar de quebra do princípio da boa-fé objetiva.
4) Breves reflexões
Diante do exposto, fica evidente que o STJ reitera sua posição de não tolerar comportamentos contraditórios nas relações contratuais. Esse entendimento já foi expresso em recursos julgados pela Terceira e Quarta Turmas do STJ, respectivamente (9).
Nota-se, portanto, a necessidade de os contratantes se atentarem para a boa-fé não apenas durante a execução do contrato, mas, também, antes e após a sua conclusão.
O comportamento coerente e não contraditório é fundamental para evitar prejuízos decorrentes da quebra de expectativa legítima; para incentivar o diálogo para solução das adversidades que não raro surgem durante a execução do contrato, bem como para diminuir as chances de encerramento antecipado e de pleitos e litígios no judiciário.
A necessidade de observar a boa-fé independe de previsão expressa no contrato. Dessa forma, é fundamental que as partes estejam sempre atentas ao que negociaram e seguem negociando durante a vigência do contrato. Um simples e-mail com a aceitação de certa condição contratual pode ser suficiente para obrigar as partes a observá-la até o final da relação contratual, ainda que o contrato seja omisso ou tenha uma previsão diferente sobre o tema objeto dessa aceitação.
O VLF Advogados possui equipe especializada de consultoria de contratos, com ampla e sólida experiência. Caso queira saber mais sobre esse assunto ou precise de qualquer suporte relacionado a contratos, basta entrar em contato conosco.
Arthur Batista
Advogado da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) PRINCÍPIO “venire contra factum proprium”. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/cdc-na-visao-do-tjdft-1/principios-do-cdc/principio-venire-contra-factum-proprium. Acesso em: 26 dez. 2022.
(2) Lei 10.406/02, Código Civil, art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
(3) NOVAIS, Alinne Arquette Leite. Os Novos Paradigmas da Teoria Contratual: O Princípio da Boa-fé Objetiva e o Princípio da Tutela do Hipossuficiente. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 22.
(4) Acórdão 1168030, 07148415120188070003, Relator: FERNANDO ANTONIO TAVERNARD LIMA, Terceira Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, data de julgamento: 30/4/2019, publicado no DJE: 8/5/2019.
(5) Lei 10.406/02, Código Civil, art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
(6) Braga Netto, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor: à luz da jurisprudência do STJ. 13. ed. rev. ampl.e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2018.
(7) FORGIONI, Paula Andrea. Teoria geral dos contratos empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 123-124.
(8) Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=151651431&num_registro=202103637990&data=20220519&tipo=91&formato=PDF. Acesso em: 26 dez. 2022.
(9) Vide as decisões no AgInt no AREsp 1.830.814/SP (8) e AgInt nos EDcl no REsp 1.647.745/SP.