Breves considerações sobre a aplicação da boa-fé objetiva ao Poder Judiciário e o novo Código de Processo Civil
Leonardo Wykrota
O novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) não foi concebido para ser apenas uma nova roupagem de seu antecessor. Não é, portanto, uma codificação “repaginada”, como se tem usado ultimamente para se referir a reformas que dão apenas um verniz de novidade a alguma coisa. Embora muito se tenha conservado do Código antigo (CPC/1973), a nova legislação, em nosso entendimento, procura contribuir para que uma nova cultura processual seja inaugurada. Busca, para tanto, descomplicar e resolver problemas do regramento processual anterior, empregar maior celeridade e reforçar normas tidas como centrais de todo o sistema processual (normas fundamentais).
Dentre essas normas, às quais o Código dedica estrategicamente seu primeiro capítulo, o legislador tratou expressamente da boa-fé processual. Cuida-se de uma das peças-chave no fomento de uma nova cultura processual que se quer comprometida com a segurança jurídica e com as expectativas legitimamente criadas pelas partes. Nesse horizonte, impõe-se a todos os que participam do processo o dever de se comportarem “de acordo com a boa-fé” (NCPC, art. 5º). Uma boa-fé em sentido objetivo, já que, como nos lembra o Professor Humberto Theodoro Jr., “[a] má-fé subjetiva (conduta dolosa, com o propósito de lesar outrem) sempre foi severamente punida, tanto no âmbito do direito público como no privado”[1]. Ou seja, quis o legislador proibir condutas contrárias à boa-fé, independentemente da intenção de causar prejuízo a outra parte. Mas quais seriam tais condutas?
DIDIER Jr., com apoio na doutrina alemã, traz rol de quatro interessantes situações de aplicação da boa-fé: (a) a proibição de se criar dolosamente posições processuais; (b) a proibição do “venire contra factum proprium”; (c) a proibição de abuso de direito processual; e (d) a perda de uma posição jurídica processual não exercida em tempo razoável, de modo a criar uma expectativa na outra parte de que não mais seria exercida [2]. Para além dessas situações, cita o dever de cooperação entre os sujeitos do processo e a condição de vetor hermenêutico da boa-fé, na medida em que as interpretações das normas processuais devem se dar de acordo com ela [3].
Não se trata, contudo, de impor conduta conforme a boa-fé apenas às partes. O legislador, não por acaso, foi expresso ao vincular [todos] aqueles que participam da relação jurídica a esse dever. Isso é, todos os que participam do processo devem se submeter ao dever de agir conforme os padrões socialmente aceitáveis pela lealdade e retidão que compõem a boa-fé. É esse o ponto de interesse do presente ensaio, no qual se pretende frisar a aplicação da teoria da boa-fé objetiva também ao judiciário.
Exemplo dessa situação é a vedação da conduta incoerente no processo. Trata-se da já mencionada proibição ao “venire contra factum proprium”. O tema foi objeto de debate no Fórum Permanente de Processualistas Civis [4], dando origem aos enunciados nº 376 e 378, editados no âmbito desse encontro:
"376. A vedação do comportamento contraditório aplica-se ao órgão jurisdicional.
[...]
378. A boa fé processual orienta a interpretação da postulação e da sentença, permite a reprimenda do abuso de direito processual e das condutas dolosas de todos os sujeitos processuais e veda seus comportamentos contraditórios."
Os enunciados, conforme se vê, salientam que o órgão do Judiciário deve, também, se submeter ao princípio da boa-fé objetiva. Não se trata propriamente de uma novidade, pois mesmo sob a vigência do Código de 1973, o magistrado também se submete ao princípio da boa-fé. E não poderia deixar de ser, pois a observância da boa-fé é norma fundamental do sistema e corolário da segurança jurídica em diversos aspectos vistos acima, em particular a vedação ao comportamento contraditório. Por isso, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) já vem aplicando o princípio da boa-fé objetiva ao órgão jurisdicional, especialmente quando reconhece por parte deste conduta contraditória e violadora do princípio da segurança jurídica (RESP 111.6574/ES).
Em vista disso, tem-se, como síntese conclusiva, que o novo Código, coerente com o propósito de sedimentar uma cultura processual sintonizada com os princípios que norteiam todo o sistema, adotou a postura pedagógica de tratar expressamente da boa-fé objetiva no rol de suas normas fundamentais. Tem-se, portanto, não só um vetor hermenêutico que deverá orientar a aplicação das demais normas processuais, mas, também, norma cogente a impor condutas específicas a serem observadas tanto pelas partes quanto pelo órgão jurisdicional.
Leonardo Wykrota
Mestre e doutorando em Direito pela PUC/MG, sócio responsável pela equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados.
[1] THEDORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. 56ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p.78.
[2] DIDIER Jr. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador. Vol. I. 17ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 111.
[3] DIDIER Jr. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador. Vol. I. 17ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 112.
[4] O V Encontro do Fórum Permanente de Processualistas Civis – V FPPC, realizado recentemente em Vitória/ES, discutiu exaustivamente diversas normas do Código de Processo Civil de 2015 e aprovou enunciados interpretativos, inclusive sobre a boa-fé objetiva no direito processual.