Guia do CADE: mais um instrumento para a busca por uma cultura empresarial de compliance
Pedro Ernesto Rocha e Paulo Vítor Ângelo
Imagine-se a seguinte situação: uma companhia locadora de veículos tem filiais por todo o território nacional, e cada uma destas filiais é comandada por um gerente geral dotado de grande autonomia. Esta companhia já possuía um forte concorrente em determinada região, e observa com preocupação o surgimento de pequenos concorrentes locais que começam a ameaçar sua posição dominante naquele mercado. Conhecidos de longa data, o gerente geral da filial local e o administrador do concorrente preestabelecido, incomodados com a competição acirrada que vêm travando e com as ameaças constantes que vêm sofrendo dos novos entrantes, decidem combinar os preços das locações dos veículos.
A situação acima descrita é comum, tratando-se de hipótese típica de conduta anticompetitiva. Por força do art. 36, §3º, I e III, da Lei nº 12.529/2011 (chamada “Lei de Defesa da Concorrência”), sua prática caracteriza infração à ordem econômica, e uma vez detectada, sujeitará as companhias envolvidas e seus respectivos gestores às penalidades previstas na Lei de Defesa da Concorrência.
É nesse contexto que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE apresentou, no dia 19 de agosto de 2015, a versão preliminar do seu Guia para Programas de Compliance (“Guia”)(1), documento concebido com a tarefa de propagar a cultura da integridade na esfera concorrencial. Seu principal objetivo, assim, está na coibição à prática de atos semelhantes ao anteriormente descrito, mediante a proposição de diretrizes não-vinculantes para a implementação de programas de compliance concorrencial. Vale anotar que o Guia mantém o seu enfoque nas chamadas condutas anticompetitivas, haja vista as recomendações de boas práticas do CADE para a condução de atos de concentração já haverem sido abordadas em documento semelhante(2).
Para atingir os objetivos aos quais se propõe, o Guia lista e conceitua os pontos comuns aos programas de compliance por ele considerados “robustos”, explicando que tais itens devem ser aplicados em todos os programas do gênero, flexibilizando-se, contudo, o seu modo de implementação (que deverá adequar-se ao caso concreto). São eles: (i) o comprometimento real da companhia para com o programa, incluindo o envolvimento de sua alta administração, a destinação de recursos adequados e a autonomia e independência de seu gestor; (ii) a realização de análise prévia criteriosa quanto aos riscos aos quais a companhia está submetida em suas atividades, de modo que o programa de compliance possa focar em suas áreas e temas mais sensíveis; (iii) a mitigação dos riscos de condutas anticoncorrenciais nestas áreas, através de treinamentos sucessivos para a conscientização do pessoal (criação de cultura corporativa), monitoramento do programa, documentação de suas atividades e aplicação de punições internas nos casos de descumprimento; e (iv) a revisão periódica do programa, para sua constante atualização.
Mais do que uma boa prática de governança corporativa, ter um bom programa de compliance tornou-se, na atualidade, uma questão de sobrevivência. Um bom programa de compliance traz benefícios inúmeros à organização que o implementa. Podem ser listados como alguns desses benefícios: a mitigação dos riscos de violação à lei e a identificação antecipada de possíveis violações; a redução de custos e contingências decorrentes destas violações (nesse sentido, frise-se que a existência de um programa efetivo de compliance pode ser vista como uma grande evidência de boa-fé da organização, reduzindo os efeitos econômicos adversos decorrentes da prática ilícita, nos termos do art. 45, II, da Lei de Defesa da Concorrência); a capacitação da companhia para acesso a mercados mais rígidos (que exigem comprometimento da organização com o cumprimento de normas e a regularidade de suas atividades); o fortalecimento de sua reputação, dentre outros. Veja-se, como exemplo, que no cenário hodierno de um mundo interconectado (web 2.0), a notícia de que determinada companhia descumpre normas – muitas das vezes normas sensíveis à opinião pública, como a promoção de fraudes a licitações por meio de cartel – pode provocar danos irreparáveis à sua reputação, prejudicando substancialmente os negócios desenvolvidos.
A divulgação do Guia é relevante no contexto econômico e social atualmente vivenciado. Realizada no encalço da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) e do Decreto que a regulamenta (Decreto nº 8.420/2015), demonstra uma tendência irrefreável do mercado de incorporação do compliance à cultura organizacional. Presta-se ainda à conscientização da própria classe empresarial, haja vista as altas direções normalmente necessitarem ser convencidas de que um funcional e efetivo programa de compliance representa investimento, e não custo.
A versão preliminar do Guia está disponível ao público em geral, que poderá enviar sugestões, críticas e/ou comentários ao CADE até o dia 18 de outubro de 2015, por meio do e-mail guiadecompliance@cade.gov.br. Embora ainda deva-se aguardar por suas revisões, o documento já se apresenta como mais um instrumento(3) de divulgação e de conscientização da necessidade e dos benefícios da implementação de programas de compliance, na busca pela criação de uma cultura empresarial de integridade e de obediência às normas.
Pedro Ernesto Rocha e Paulo Vítor Ângelo
Advogados da equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
(1) Disponível em: http://www.cade.gov.br/Default.aspx?2619e93fd64ca062b481d26efa5d, acesso em 17 de setembro de 2015.
(2) “Guia para Análise de Consumação Prévia de Atos de Concentração”, disponível em: http://www.cade.gov.br/upload/Guia%20gun%20jumping-%20vers%C3%A3o%20final%20(3).pdf, acesso em 17 de setembro de 2015
(3) Um dos instrumentos mais conhecidos e utilizados como base em programas de compliance é o guia de compliance da International Chamber of Commerce (inclusive o Guia do CADE o cita como referência), disponível em: http://www.iccwbo.org/Advocacy-Codes-and-Rules/Document-centre/2013/ICC-Antitrust-Compliance-Toolkit/, acesso em 17 de setembro de 2015.