Debêntures-fut: uma alternativa para a superação da crise econômico-financeira das sociedades anônimas do futebol
Paulo Vítor Ângelo e Letícia Camargos
Em estudo publicado pela Confederação Brasileira de Futebol (“CBF”) em 2019, evidenciou-se que o futebol movimenta o valor aproximado de R$ 52,9 bilhões ao ano no Brasil, gerando cerca de 156 mil empregos e respondendo com sua cadeia produtiva por cerca de 0,72% do produto interno bruto do país (1). Além de figurar como uma das principais paixões dos brasileiros, sendo acompanhado com interesse por aproximadamente 62% da população nacional (2), é inegável que o impacto causado pelo esporte no “país do futebol” extrapola o limite das quatro linhas.
Não obstante a relevância econômica e cultural do futebol para os brasileiros, é consenso que o desempenho econômico-financeiro dos clubes de futebol do país revela-se, no mínimo, insatisfatório. Cite-se, a título exemplificativo, que apesar de as 25 maiores entidades desportivas do Brasil terem verificado um aumento de 153% em suas receitas entre os anos de 2012 e 2021, os respectivos índices de endividamento, como um todo, também praticamente dobraram no mesmo período (3). E para compreender o colapso financeiro dos grandes clubes, é necessário perpassar pela organização societária e gerencial historicamente viabilizada pelo ordenamento jurídico brasileiro.
A princípio, apenas era admitido aos clubes de futebol revestir-se do formato jurídico de associação (4), sem que as entidades desportivas pudessem resultar em lucro para os que nelas aplicassem recursos, e sem que as atividades diretivas pudessem ser, de qualquer modo, remuneradas (5). Por esses motivos, os clubes de futebol eram normalmente geridos de forma amadora e permeada por fraudes, sem a adoção de estratégias de negócios atrativas para parceiros e investidores (6).
No contexto global, no entanto, o futebol, a partir da década de 1990, passou a se tornar cada vez mais profissional e disciplinado sob o viés negocial, exigindo dos clubes associados às grandes ligas a adoção de sistemas de governança mais modernos e eficientes (7). Diante desse cenário, tiveram espaço em nosso país, já a partir do período em referência, iniciativas legislativas que propuseram alternativas para a profissionalização da gestão dos clubes, por meio da adoção de estruturas que ficaram comumente conhecidas como “clube-empresa” (8). Mas foi apenas em 2021, com a promulgação da Lei nº 14.193/2021 (“Lei das SAF”) (9), que as entidades desportivas encontraram o estímulo e a segurança jurídica necessárias ao tratamento de seus processos de reorganização societária e de gerenciamento de passivos.
A sociedade anônima do futebol (“SAF”), regida pela Lei das SAF e, em caráter supletivo, pela Lei nº 6.404/1976 (“Lei das S.A.”) (10), foi idealizada como estrutura societária apta a transformar a realidade do futebol no Brasil (11). Nesse sentido, encontra-se a SAF submetida a normas de governança e transparência que inspiram níveis de credibilidade e segurança compatíveis com as melhores práticas atuais, além de estar sujeita a regime de tributação específico e de dispor de novas alternativas para a superação do contexto de crise econômico-financeira comumente experimentado. É diante desse cenário que a Lei das SAF propõe, como alternativa para o financiamento das entidades desportivas, a possibilidade de emissão das chamadas “debêntures-fut” – uma modalidade especial de debêntures cuja emissão é restrita ao universo das SAF (12).
Debêntures são valores mobiliários que conferem a seus titulares direito de crédito perante a companhia, sob as condições constantes da escritura de emissão e, se houver, dos certificados. Possuem como finalidade precípua viabilizar a captação de recursos pela entidade emissora, assegurando ao investidor rendimentos consistentes em juros fixos e/ou variáveis, em participação nos lucros da companhia e/ou em prêmio de reembolso, além de quaisquer outros direitos e/ou vantagens que venham a ser estipulados na escritura de emissão, incluindo a possibilidade de conversão em ações. A Lei das S.A., em seus artigos 52 a 74, dispõe sobre as características gerais das debêntures, assim como sobre os direitos assegurados aos debenturistas e os procedimentos a serem observados para a sua emissão e registro.
As debêntures-fut também se vinculam à maior parte do complexo normativo definido pela Lei das S.A. para a emissão de valores mobiliários desta natureza, sobretudo em virtude da omissão da Lei das SAF em dispor sobre os procedimentos aplicáveis a sua emissão e registro. Possuem, no entanto, determinados atributos próprios definidos no artigo 26 da Lei das SAF, que estabelece como características específicas das debêntures-fut:
(a) remuneração por taxa de juros não inferior ao rendimento anualizado da caderneta de poupança, permitida a estipulação, cumulativa, de remuneração variável, vinculada ou referenciada em atividades ou ativos da SAF (artigo 26, I);
(b) prazo igual ou superior a 2 (dois) anos (artigo 26, II);
(c) vedação à recompra das debêntures-fut pela SAF ou por parte a ela relacionada, assim como à liquidação antecipada por meio de resgate ou pré-pagamento, salvo na forma a ser regulamentada pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM (artigo 26, III);
(d) pagamento periódico de rendimentos (artigo 26, IV);
(e) registro das debêntures-fut em sistema autorizado pelo Banco Central do Brasil – BACEN ou pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, nas respectivas áreas de competência (artigo 26, V); e
(f) obrigatoriedade de que os recursos captados sejam alocados no desenvolvimento de atividades ou no pagamento de gastos, despesas ou dívidas relacionadas às atividades típicas da SAF (artigo 26, §1º).
A definição de tais características visa, sobremaneira, a resguardar os interesses dos potenciais investidores que figurem como torcedores da entidade desportiva, na medida em que estes indivíduos, movidos pela paixão e pelo imponderável, poderão se dispor a adquirir tais valores mobiliários independentemente das condições oferecidas. Assim, a estipulação de um piso mínimo para as taxas de juros que remunerarão o capital investido, somada à periodicidade estabelecida para o respectivo pagamento, visam a assegurar que o investidor não entre em jogo em substancial desvantagem econômica, motivado apenas por seu amor à agremiação. Do mesmo modo, a vedação à recompra das debêntures-fut pela SAF inviabiliza a influência dos clubes na valorização ou desvalorização do título (13), assegurando a qualidade do crédito.
Entretanto, uma das principais vantagens atribuídas às debêntures-fut no contexto do Projeto de Lei nº 5.516/2019, que deu origem à Lei das SAF, foi retirada de campo antes mesmo da entrada em vigor da nova lei. Tratava-se do incentivo fiscal previsto no §2º do artigo 26, segundo o qual os rendimentos decorrentes da aplicação de recursos em debêntures-fut se sujeitariam à incidência de imposto sobre a renda, exclusivamente na fonte, a alíquotas que, simplificadamente, corresponderiam aos percentuais de: (a) 0%, para pessoas naturais residentes no país; e (b) 15%, para pessoas jurídicas ou fundos de investimento domiciliados no país, além de quaisquer investidores residentes ou domiciliados no exterior. O dispositivo vetado, caso mantido no texto da Lei das SAF, tornaria o investimento em debêntures-fut ainda mais atrativo, notadamente para os torcedores.
Em todos os casos, a emissão das debêntures-fut, sob a perspectiva da SAF, representa interessante mecanismo para a gestão de seu endividamento e a superação do contexto de crise econômico-financeira, uma vez que os recursos captados por este meio se sujeitam ao pagamento de taxas de juros inferiores àquelas comumente praticadas pelas instituições financeiras no mercado. Além disso, a SAF, como já exposto, pode valer-se da paixão do torcedor como estímulo para a aquisição de tais valores mobiliários, sobretudo na medida em que os recursos captados deverão, necessariamente, ser alocados no desenvolvimento de atividades ou no pagamento de gastos, despesas ou dívidas relacionadas às atividades típicas da SAF: em última instância, o futebol.
Passado mais de um ano desde a entrada em vigor da Lei das SAF, não se tem notícia de que as grandes entidades desportivas já revestidas do formato de SAF tenham se valido da emissão de debêntures-fut para a captação de recursos. Isso, entretanto, não invalida os méritos da iniciativa, cujo potencial ainda poderá ser explorado à medida que mais e mais clubes de futebol venham a aderir ao novo modelo societário. O passe foi dado, e agora resta observar como o mundo do futebol se comportará diante das novas possibilidades.
Paulo Vítor Ângelo
Advogado da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Letícia Camargos Ferraz
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) Dados obtidos a partir do relatório “Impacto do Futebol Brasileiro”, disponível em: https://conteudo.cbf.com.br/cdn/201912/20191213172843_346.pdf. Acesso em: 23 jan. 2023.
(2) Dados disponíveis a partir do relatório “Fan of the Future”, publicado em 2020 pela European Club Association, disponível em: https://www.ecaeurope.com/media/4816/eca-fan-of-the-future-defining-modern-football-fandom_website.pdf. Acesso em: 23 jan. 2023.
(3) Dados obtidos a partir do relatório “Levantamento Financeiro dos Clubes Brasileiros 2021”, disponível em: https://assets.ey.com/content/dam/ey-sites/ey-com/pt_br/topics/media-and-entertainment/ey-levantamento-financeiro-dos-clubes-brasileiros-2021.pdf. Acesso em: 23 jan. 2023.
(4) Vide artigo 24 do Decreto-Lei nº 3.199/1941, que ainda não foi expressamente revogado, disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3199-14-abril-1941-413238-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 23 jan. 2023.
(5) Vide artigos 48 e 50 do Decreto-Lei nº 3.199/1941, disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3199-14-abril-1941-413238-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 23 jan. 2023. No mesmo sentido, artigos 187 e 188 do Decreto nº 80.228/1977, disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-80228-25-agosto-1977-429375-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 23 jan. 2023.
(6) OLIVEIRA, Monique Cristiane de; BORBA, José Alonso; FERREIRA, Denize Demarche Minatti; LUNKES, Rogério João. “Características da estrutura organizacional dos clubes de futebol brasileiros: o que dizem os estatutos?”. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rco/article/view/134462. Acesso em: 23 jan. 2023.
(7) BACS, Eva Baba. Challenges to Professional Football Companies and Their Answers with particular Regard to organizational changes. In: DANUBE, Law and Economics Review, p. 105-125. European Association Comenius, 2014.
(8) Esse assunto foi abordado no Informativo VLF nº 91/2022. FERNANDES, Eduardo Metzker; GOMES, Fernanda de Figueiredo. As principais inovações da Lei 14.193/2021 e os mecanismos para superação do endividamento dos clubes de futebol. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=1029. Acesso em: 23 jan. 2023.
(9) BRASIL. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Institui a sociedade anônima do futebol. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14193.htm. Acesso em: 23 jan. 2023.
(10) BRASIL. Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm. Aceso em: 27 dez. 2022.
(11) O Projeto de Lei nº 5.516/2019, posteriormente convertido na Lei das SAF, trouxe expressamente como objetivo da SAF “oferecer aos clubes uma via societária [...] [na] qual as organizações que atuem na atividade futebolística, de um lado, inspirem maior confiança, credibilidade e segurança, a fim de melhorar sua posição no mercado e seu relacionamento com terceiros, e, de outro, preservem aspectos culturais e sociais peculiares ao futebol”.
(12) Para além das debêntures-fut, a Lei das SAF também idealizou, como mecanismos aptos a viabilizar a superação da crise econômico-financeira das entidades desportivas, o Regime Centralizado de Execuções – REC e a possibilidade de ingresso em processos de recuperação judicial ou extrajudicial.
(13) CARREIRA, João Paulo. As Debêntures-Fut no âmbito da Lei nº 14.193/21. In: SOUZA, Gustavo Lopes Pires de; RAMALHO, Carlos Santiago da Silva. Sociedade Anônima do Futebol: Primeiras Linhas. Belo Horizonte: Editora Expert, 2022.