Notícias sobre a aplicação da teoria do terceiro nos contratos de prestação de serviços em recente decisão do STJ
Felipe Melazzo e Leila Bitencourt
Objeto de textos anteriores (1), a teoria do “terceiro ofensor” traz discussões para o direito contratual a respeito de quem são as pessoas impactadas pelos contratos. Isso porque ela pode afastar a ideia comum de que só são afetadas pelo contrato as partes que o firmaram.
A teoria do “terceiro ofensor”, como dever derivado de outros institutos jurídicos (como a boa-fé objetiva, a oponibilidade dos contratos e a eficácia externa ou transubjetiva das obrigações), dispõe acerca da possibilidade de responsabilização civil daquele(s) que interfere(m) de forma lesiva no contrato alheio (2).
Isso significa que, mesmo aqueles que não estão envolvidos diretamente no contrato devem se comportar de modo a não impedir que o objetivo da contratação seja alcançado (3).
A aplicação da teoria do terceiro ofensor pode se dar de formas diferentes, a depender do tipo contratual, das características do caso e dos sujeitos envolvidos na contratação. Este texto trata da aplicação da teoria do terceiro ofensor no contrato de prestação de serviços empresarial tanto do ponto de vista legal, quanto do ponto de vista do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) a partir de recente decisão da Terceira Turma.
1) Aplicação da teoria do terceiro ofensor e a eficácia transubjetiva das obrigações nos contratos de prestação de serviços
Diferente do que ocorre em outros contratos regulados pelo Código Civil (“CC/02”), a teoria do terceiro ofensor tem uma de suas hipóteses prevista na lei quando se trata do contrato de prestação de serviços, isto é, da relação cujo objeto é a prestação de atividade humana, seja intelectual, material ou física (pelo prestador de serviços), mediante retribuição (do tomador dos serviços) (4).
O Artigo 608 do CC/02 determina que “aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem” pagará ao tomador dos serviços, cujo contrato foi aliciado, quantia indenizatória pelo ajuste desfeito. A partir desse artigo, entende-se que se determinado terceiro atrair e/ou induzir prestadores de serviços já vinculados a tomadores por meio de contratos a prestar serviços para si mesmo ou para outros terceiros de forma a quebrar o vínculo anterior, esse terceiro deverá pagar um valor para o tomador eventualmente prejudicado.
Trata-se, portanto, de previsão que estabelece, expressamente, que o terceiro que interfere em relação contratual alheia de forma prejudicial deve indenizar os prejuízos que tiver efetivamente causado.
Isso significa que qualquer interferência no contrato de prestação de serviços firmado entre empresas é considerada um aliciamento e/ou ação de um terceiro ofensor de modo a gerar responsabilização? A resposta para essa pergunta perpassa pela análise do julgamento do Recurso Especial nº 2.023.942/SP (“Recurso”) pelo STJ.
2) Decisão do STJ e a interpretação do Artigo 608
Em 2013, o humorista Danilo Gentili firmou contrato de prestação de serviços com a rede de TV Bandeirantes (“Band”) com vigência até 2014. Ocorre que, antes do prazo acordado, o artista recebeu proposta do SBT, e ao aceitá-la, solicitou o encerramento antecipado do contrato com a Band para prestar seu trabalho para a outra rede televisiva em questão.
Com base no Artigo 608 do CC/02, a Band ajuizou ação contra o SBT alegando aliciamento profissional e concorrência desleal, solicitando indenização pelos prejuízos que sofreu. O pedido da Band foi julgado em primeiro e segundo graus de modo que ambas as instâncias determinaram o pagamento pelo SBT da indenização solicitada pela Band. Entretanto, por meio do Recurso direcionado ao STJ, o SBT conseguiu reverter as decisões anteriores, teve seu pedido provido e, portanto, não teve de pagar indenização.
Ressalta-se que, para este texto, as questões processuais relativas ao julgamento do Recurso não são relevantes, se comparadas ao seu conteúdo e às contribuições trazidas na decisão sobre a teoria do terceiro ofensor no contexto empresarial de prestação de serviços.
Dito isso, o voto que guiou a decisão da Terceira Turma do STJ foi o do Ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva (“Ministro”), o qual expôs que:
Portanto, se por um lado, a teoria do terceiro ofensor, cúmplice ou interferente reforça a função social do contrato e os deveres decorrentes da boa-fé objetiva, a condicionar, em alguma medida, o exercício da liberdade contratual de terceiros, por outro, demanda algum cuidado na aplicação literal do disposto no art. 608 do Código Civil de 2002, a extrair que toda a coletividade teria o dever de abstenção da pactuação de negócios jurídicos com prestadores de serviço no curso de contratos anteriormente assumidos (5).
Dessa forma, a responsabilidade de terceiro ofensor não pode ser presumida apenas porque ele sabe da existência do contrato firmado. Isto é, deve haver a vontade manifesta de aliciamento de forma desleal entre os agentes econômicos. Segundo o Dicionário Michaelis, aliciar significaria “atrair ou chamar a si” ou “seduzir” (6). Essa seria a conduta reprimida pelo Artigo 608 do CC/02.
Ainda segundo o voto do Ministro, nesse caso em específico, a liberdade de contratar (e, consequentemente, de realizar propostas) das partes envolvidas deve ser levada em consideração, tendo em vista, principalmente, as qualificações e expertise existentes no mercado das contratantes. Por se tratar de emissora de TV bastante experiente em suas atividades, isso indicaria a possibilidade de a Band alocar os riscos envolvidos por meio da previsão de cláusulas contratuais, com multas suficientes para indenizar qualquer uma das partes em caso de encerramento antes da vigência do contrato ou, até mesmo, para prever uma cláusula de não concorrência após o término do contrato (7).
Portanto, o STJ entendeu que a realização de proposta feita pelo SBT na vigência do contrato de Gentili com a Band não se trata do aliciamento previsto no Art. 608 do CC/02, tendo em vista que não houve vontade manifesta de aliciar, mas sim um comportamento inevitável de mercados competitivos inseridos no contexto econômico e concorrencial que permeia as relações empresariais. Exigir a cooperação de duas grandes e concorrentes emissoras televisivas nos termos narrados significaria, segundo o STJ, contrariar essa lógica empresarial (8).
Por fim, o voto do Ministro fez menção ao caso do cantor Zeca Pagodinho (explorado pelo VLF no Informativo VLF - 93/2022, de 28 de junho de 2022), para explicar que naquele caso, apesar de também se tratar de contratos empresariais, diferente do ocorrido no REsp nº 2.023.942, foi reconhecida na conduta da agência de publicidade envolvida a prática de concorrência desleal, com intervenção ilícita em contrato de publicidade alheio, de forma a prejudicar a reputação de outros negócios e criar confusão nos consumidores a respeito das empresas e/ou produtos e serviços envolvidos (9).
3) Breves reflexões conclusivas
A partir da decisão do STJ exposta acima, é possível concluir que a aplicação da teoria do terceiro ofensor no contrato de prestação de serviços empresarial deve levar em consideração o comportamento praticado no mercado dos envolvidos e a vontade manifesta de aliciar, nos termos do Art. 608 do CC/02.
A mera realização de proposta por um terceiro para o prestador de serviços que já está vinculado a outro contrato, a depender do contexto econômico que o objeto contratual está inserido, não necessariamente caracteriza intervenção indevida de terceiro ofensor e o consequente aliciamento que pode fundamentar a obrigação de indenização para aquele que apresentou proposta para a empresa prestadora.
As contratações empresariais são pautadas por esse risco, isto é, estão inseridas em contexto de intensa concorrência. Dessa forma, esses aspectos devem ser levados em consideração para a construção dos contratos de forma a alocar os riscos e resguardar as partes envolvidas.
O VLF Advogados, sempre atento às necessidades de seus clientes, possui equipe especializada de consultoria em contratos. Caso queira saber mais sobre esse assunto, basta entrar em contato conosco.
Felipe Melazzo
Advogado da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
Leila Bitencourt
Advogada da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
(1) Conforme abordamos o tema anteriormente no Informativo VLF - 93/2022, de 28 de junho de 2022. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=1049. Acesso em: 20 jan. 2023.
(2) Página 7 da decisão e voto do Recurso Especial nº 2.023.942/SP. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=168903670®istro_numero=202200187157&peticao_numero=&publicacao_data=20221028&formato=PDF. Acesso em: 20 jan. 2023.
(3) Páginas 7 e 8 da decisão e voto do Recurso Especial nº 1.316.149 – SP. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=32265154&num_registro=201200598840&data=20140627&tipo=51&formato=PDF. Acesso em: 16 jun. 2022.
(4) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: contratos. v. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 358-359.
(5) Página 9 da decisão e voto do Recurso Especial nº 2.023.942/SP. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=168903670®istro_numero=202200187157&peticao_numero=&publicacao_data=20221028&formato=PDF. Acesso em: 20 jan. 2023.
(6) Definição disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=aliciar. Acesso em: 23 jan. 2023.
(7) Página 10 da decisão e voto do Recurso Especial nº 2.023.942/SP. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=168903670®istro_numero=202200187157&peticao_numero=&publicacao_data=20221028&formato=PDF. Acesso em: 20 jan. 2023.
(8) Página 12 da decisão e voto do Recurso Especial nº 2.023.942/SP. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=168903670®istro_numero=202200187157&peticao_numero=&publicacao_data=20221028&formato=PDF. Acesso em: 20 jan. 2023.
(9) Página 11 da decisão e voto do Recurso Especial nº 2.023.942/SP. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=168903670®istro_numero=202200187157&peticao_numero=&publicacao_data=20221028&formato=PDF. Acesso em: 20 jan. 2023.