Regramento societário brasileiro: o que você precisa saber
Pedro Ernesto Rocha e Letícia Camargos Ferraz
O empreendedorismo é realidade no cotidiano brasileiro: de acordo com os dados apurados pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (“DREI”) há no Brasil cerca de vinte milhões de empresas ativas (1). Essas empresas envolvem desde os mais simples empreendimentos, que são constituídos a baixo custo e com baixo capital, até os projetos mais sofisticados, que envolvem a movimentação de grandes recursos e eventualmente forte supervisão de órgãos reguladores. Neste cenário, entender algumas questões básicas do Direito Societário é essencial para planejar, organizar e gerir uma empresa e para analisar e realizar um investimento, e é exatamente a isso que se presta este artigo: dar ao leitor alguns conceitos mínimos para compreender o ambiente empresarial.
Para atingir esse objetivo, o leitor passeará pela distinção entre pessoas físicas e pessoas jurídicas, conseguirá visualizar as diferentes pessoas jurídicas, as entidades que não são pessoas jurídicas, mas que podem ser constituídas para o exercício de atividades econômicas, e perceberá as diferenças entre essas figuras e como essas diferenças podem influenciar em suas escolhas de como empreender ou de onde investir.
Iniciando o tema, é preciso explicar o conceito de pessoas físicas: são as pessoas chamadas pela lei de naturais (você, seus amigos, parentes etc.), dotadas de personalidade civil e capazes de direitos e deveres. No panorama empresarial, as pessoas físicas podem ser empresárias, sócias de sociedades (isto é: donas; proprietárias de quotas ou ações) ou administradoras de sociedades. Desse modo, caso um indivíduo tenha interesse de se engajar em atividades empresariais, poderá fazê-lo: (i) individualmente, como pessoa física (ou seja, sem o intermédio de sociedade criada para tanto), cadastrando-se no regime fiscal denominado Microempreendedor Individual (“MEI”), obtendo assim um CNPJ (2) e se tornado desta forma um empresário; ou (ii) individualmente, por meio de pessoa jurídica constituída sob a forma de sociedade unipessoal; ou (iii) coletivamente, por meio de pessoa jurídica constituída junto a outros indivíduos ou outras pessoas jurídicas interessadas, sob a forma de sociedade. A pessoa física também poderá participar de associações e cooperativas (3).
As pessoas jurídicas, por sua vez, são entidades autônomas criadas por força de lei, que não se confundem com as pessoas (físicas ou jurídicas) que as criaram, a saber seus sócios ou associados. As pessoas jurídicas são instituições dotadas daquilo que legalmente se chama de personalidade jurídica, o que as tornam capazes de assumir direitos e deveres, e se constituem, em regra, com a inscrição do ato jurídico de constituição (contrato social ou estatuto social, em geral) no registro público competente, que poderá ser a Junta Comercial ou o Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, ocasião em que recebe um CNPJ. Uma vez constituídas, as pessoas jurídicas podem exercer praticamente todos os atos que uma pessoa física, tais como a celebração de contratos com fornecedores e clientes, a contratação de pessoal, a prestação de serviços ou venda de produtos, a aquisição ou alienação de bens de seu patrimônio, entre outros.
Entre as pessoas jurídicas, destacam-se as associações e as sociedades, sendo que as sociedades têm entre suas formas mais conhecidas as sociedades cooperativas, as sociedades limitadas e as sociedades anônimas.
Para além das pessoas físicas e das pessoas jurídicas, existem, ainda, estruturas contratuais (também chamados usualmente de entes despersonalizados), que não são pessoas jurídicas, mas, assim como as sociedades acima citadas, se prestam a unir esforços de pessoas para o desenvolvimento de uma atividade. Essas estruturas mais conhecidas são os consórcios e as sociedades em conta de participação (conhecidas como “SCP”).
E, por fim, vale mencionar a existência de um “rótulo” (nome) atribuído a muitas estruturas jurídicas: sociedade de propósito específico (vulgarmente, “SPE”).
Segue abaixo resumo de cada uma das figuras acima indicadas:
Associação
As associações são constituídas por duas ou mais pessoas, que congregam esforços para o exercício de atividades que irão beneficiá-las, sem a realização de atividade tipicamente econômica e sem distribuição de lucros. São regidas pelos artigos 53 e seguintes da Lei nº 10.406/2002 (“Código Civil”), e dentro das regras aplicáveis há a previsão de direitos iguais entre os associados, a tomada de decisões – como eleição e destituição de administradores, alteração de estatuto e aprovação de contas da administração – por assembleia geral e a impossibilidade de exclusão de associado sem justa causa. A associação não possui capital social e o patrimônio social é, em regra, composto por valores contribuídos pelos associados. Os eventuais resultados provindos das associações são convertidos em financiamento à atividade. Os associados não criam vínculo jurídico entre si, tendo responsabilidades apenas em relação à associação. Em caso de dívidas da associação, os associados não poderão ser responsabilizados. São exemplos: Minas Tênis Clube (4), Associação Médica Brasileira (5) e Associação dos Magistrados Mineiros (6).
Sociedades
As sociedades são pessoas jurídicas com capital social, objeto social e patrimônio próprio e, nos tipos societários mais comuns (sociedade limitada e sociedade anônima), possuem patrimônio totalmente independentes do patrimônio de seus sócios. As sociedades são constituídas para a realização de determinadas atividades de interesse de seus sócios e visa o lucro. A aquisição da personalidade jurídica se dá com a inscrição dos seus atos constitutivos no órgão de registro competente, isto é, a Junta Comercial da unidade da federação da sede da sociedade (7). Após o registro, é gerado o Número de Identificação do Registro de Empresas (“NIRE”) na Junta Comercial de registro e o número da sociedade no CNPJ. Os sócios, ao constituírem sociedade, transferem-lhe bens que passam a compor o capital social. Com o exercício de sua atividade, a sociedade realizará negócios nos quais auferirá lucros ou sofrerá prejuízos, com a consequente ampliação ou redução do próprio patrimônio. Esse patrimônio não se confunde com o dos sócios e, assim, em tese, nenhuma dívida da sociedade poderá ser cobrada do sócio ou vice-versa.
Sociedade Cooperativa
A sociedade cooperativa é regida pelo Código Civil e pela Lei nº 5.764/71 (“Lei do Cooperativismo”) e tem por objeto realizar negócio em favor de seus cooperados (8). A cooperativa aglutina os cooperados, para que esses exerçam determinadas atividades econômicas, de proveito comum, sem objetivo de lucro para a entidade. A entidade apenas propicia a atuação conjugada para que os cooperados tenham lucro em suas atividades individuais. Assim, a entidade presta serviços aos associados. São constituídas pelo registro do ato de constituição (ata de constituição e estatuto social) na Junta Comercial e com a publicação desses atos em jornal, e os cooperados poderão ser pessoas físicas, ou, excepcionalmente, pessoas jurídicas. A cooperativa possui capital social e a responsabilidade do sócio (por dívidas da cooperativa) pode ser limitada (ao valor com o qual o cooperado tiver contribuído com o capital da cooperativa) ou ilimitada. São exemplos: Copersucar (9), Cooxupé (10) e Frimesa (11).
Sociedade Limitada
Cerca de 30% (trinta por cento) de todas as empresas ativas no Brasil são sociedades limitadas. Em razão da limitação de responsabilidade oferecida por essa forma jurídica, além dos custos baixos para cumprimento de formalidades e manutenção da sociedade e da adaptabilidade para os diversos tipos de empreendimento, a sociedade empresária limitada é a primeira escolha de grande parte dos empreendedores. A nomenclatura das sociedades que adotam esse regime jurídico deverá ser composta com a palavra “limitada” ou com a abreviatura “ltda.”.
A sociedade limitada é composta por um ou mais quotistas que contribuem com dinheiro ou bens para a execução da atividade empresarial. As entradas e saídas de sócios são registradas no contrato social, e constam dos assentamentos públicos da Junta Comercial ou do Cartório de Pessoas Jurídicas. Logo, qualquer pessoa pode pagar o preço público da certidão de inteiro teor, ter acesso aos atos societários de uma sociedade e conhecer seus sócios.
Como o nome sugere, na sociedade limitada a responsabilidade de um sócio é limitada, sendo restrita ao valor de suas quotas. Ou seja, em tese (12), um sócio não terá seu patrimônio afetado por dívidas da sociedade, exceto o patrimônio que ele transferiu à sociedade como aporte de capital.
A sociedade limitada terá um ou mais administradores, sócios ou não sócios, e deverá realizar reunião ou assembleia de sócios ao menos uma vez ao ano para a aprovação de contas da administração. Essa forma societária permite a definição contratual de formas de entrada e retirada de sócios na sociedade, exclusão de sócios minoritários pelos majoritários, possibilidade de distribuição desproporcional de lucros, e, apropriando-se de institutos que são típicos das sociedades anônimas, as sociedades limitadas atualmente também comportam a criação de conselho de administração, quotas sem direito a voto e a emissão de instrumentos de dívida para captação de recursos (13) (como mútuos conversíveis).
São exemplos: Grupo Boticário (14), Heineken Brasil (15) e Nestlé Brasil (16).
Sociedade Anônima
As sociedades anônimas são regidas pela Lei nº 6.404/1976 (“Lei das S.A.”), que estabelece um regime jurídico com diversas formalidades e obrigações atinentes a esse tipo societário. Esse regime jurídico pode ser identificado pela nomenclatura das sociedades que o adotam, pois sempre haverá as palavras “companhia” ou “sociedade anônima” ou as abreviaturas “Cia” ou “S/A” ou “S.A.”.
Nas sociedades anônimas, a responsabilidade de cada acionista é limitada ao valor de emissão de suas ações e, assim, da mesma forma que nas sociedades limitadas, um sócio não terá seu patrimônio afetado por dívidas da sociedade, exceto o patrimônio que ele transferiu à sociedade como aporte de capital.
As entradas e saídas de acionistas são registradas em livros de registro de ações e de transferência de ações, que ficam na companhia, ou são registrados por meio de livros geridos por agentes escrituradores contratados para tanto (instituições financeiras). Ao contrário das sociedades limitadas, esses registros não são levados a registro na Junta Comercial e, portanto, não são públicos.
As sociedades anônimas podem ser geridas por dois órgãos de administração, a Diretoria e o Conselho de Administração, que possuem responsabilidades e obrigações definidas pela lei e pelo Estatuto Social. As sociedades anônimas podem ter capital aberto – oportunidade em que as ações são comercializadas em bolsa de valores – ou fechado, nas quais as ações não são comercializadas com o público geral, mas, sim, com acionistas interessados em caráter privado.
Esse tipo societário é aquele em que as ferramentas de captação de recursos e as regras de governança e proteção de acionistas minoritários são mais bem reguladas, e, por isso, somente sociedades anônimas podem ter suas ações comercializadas em bolsa de valores. Neste sentido, nas sociedades anônimas, é possível emitir debêntures, ações ordinárias e preferenciais, mútuos conversíveis etc. e existem vários mecanismos de proteção aos acionistas.
São exemplos: Petrobrás (17), Banco do Brasil (18) e Magazine Luiza (19).
Sociedade de Propósito Específico
A Sociedade de Propósito Específico (“SPE”) advém da prática empresarial e da leitura do parágrafo único do artigo 981 do Código Civil, que determina que a atividade empresarial pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados. Assim, a SPE nada mais é do que sociedade criada para um objetivo/projeto específico. Na prática, são muito utilizadas em parcerias público-privadas, uma vez que a Lei nº 11.079/2004 condiciona a celebração de contratos à constituição prévia de SPE para implementar e gerir o objeto da parceria.
Por não se tratar de forma societária autônoma, a SPE pode ser constituída sobre a forma de sociedade limitada ou sociedade anônima, vinculando-se às regras específicas do típico jurídico adotado. Na formação do nome empresarial, poderá, a critério dos sócios, ser agregada a sigla “SPE” antes da designação do tipo jurídico, observados os demais critérios de formação do nome.
Sociedade em Conta de Participação
A sociedade em conta de participação (“SCP”), apesar do nome, não possui personalidade jurídica e patrimônio próprio. Na sociedade em conta de participação, é celebrado contrato entre os sócios disciplinando a relação a ser estabelecida no âmbito negocial. O arranjo determina que um dos sócios – o sócio ostensivo – conduzirá os negócios sociais em seu nome, observado o interesse comum dos sócios, enquanto os demais sócios – chamados de sócios ocultos ou participantes – fornecerão recursos para execução ou apoiarão a execução do objeto social.
Assim, o contrato de sociedade em conta de participação permite atingir importantes objetivos: obtenção de capital para dado empreendimento, proporcionando-se ao emprestador uma participação nos lucros ou prejuízos consequentes, sem que o emprestador fique exposto e/ou a participação de um parceiro na execução de um projeto (20).
Logo, um ponto atrativo para adoção de um contrato SCP é a distribuição de responsabilidade entre os sócios: a atividade empresarial é realizada sob a responsabilidade exclusiva do sócio ostensivo (art. 991), de modo que sobre o sócio participante não recairá nenhuma obrigação perante a terceiros, mas tão somente perante o próprio sócio ostensivo. Portanto, não é concedido aos credores da SCP qualquer direito ou pretensão em relação aos sócios participantes. Além disso, no âmbito da SCP só há necessidade de inscrição de obtenção do CNPJ, mas não existe registro público do contrato de constituição dessa sociedade.
Consórcio
O consórcio previsto na Lei das S.A. (21), por sua vez, também não é ente com personalidade jurídica e possui regulação bastante flexível. Assim, nos consórcios, não é necessário realizar assembleias gerais, eleições periódicas de corpo administrativo e nem tampouco existe regra que atribui necessariamente direitos iguais aos consorciados. É possível congregar sociedades dentro de um consórcio (que, então, são chamadas de sociedades consorciadas), e cabe ao contrato de consórcio estabelecer livremente as regras de adesão, deliberação e gestão da entidade.
Os consórcios são constituídos para execução de determinado empreendimento entre seus membros, mediante a partilha dos esforços e resultados. Nesse cenário, as consorciadas somente se obrigam nas condições previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem presunção de solidariedade. Na prática, o consórcio é muito comum para o cumprimento de contratos públicos.
Para sumarizar, portanto, as principais formas de empreender previstas na legislação brasileira são:
> Para empreender enquanto pessoa física: microeempreendedores individuais, com CNPJ e sem personalidade jurídica;
> Para empreender enquanto pessoa jurídica: sociedades, sendo as mais comuns a sociedade cooperativa, a sociedade limitada e a sociedade anônima, todas com CNPJ e personalidade jurídica;
> Para empreender utilizando-se de estruturas contratuais: consórcios e SCP, com CNPJ e sem personalidade jurídica.
Letícia Camargos Ferraz
Advogada da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
Pedro Ernesto Rocha
Coordenador da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
(1) Disponível em: https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/mapa-de-empresas/boletins/mapa-de-empresas-boletim-3o-quadrimestre-2022.pdf. Acesso em: 17 fev. 2022.
(2) CNPJ significa Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas, e, apesar desse nome, é uma inscrição para fins fiscais que as pessoas jurídicas recebem e que as pessoas físicas, quando se inscrevem como Microempreendedoras Individuais, também recebem. Alguns outros entes, como os consórcios e as SCP, também têm CNPJ, mas não são pessoas jurídicas.
(3) Em regra, a pessoa física não pode participar de consórcio societário, nos termos do artigo 298 da Lei das S.A. Todavia, há exceção, conforme a Lei nº 14.300/2022, que será explicada no próximo artigo deste Informativo.
(4) https://minastenisclube.com.br/
(5) https://amb.org.br/#
(6) https://amagis.com.br/
(7) O registro poderá ser na Junta Comercial ou no Cartório de Pessoas Jurídicas, porque o Código Civil cria uma separação entre “sociedades simples limitada” e “sociedades empresárias limitada”. Na prática, há poucas diferenças entre esses tipos.
(8) Apesar das cooperativas serem sociedades (e não associações), a Lei do Cooperativismo chama os cooperados de “associados”.
(9) https://www.copersucar.com.br/
(10) https://www.cooxupe.com.br/
(11) https://www.frimesa.com.br/pt/imprensa
(12) Existem exceções em alguns casos e matérias específicas, como será tratado em artigo próprio neste Informativo.
(13) Não pode, no entanto, entrar na bolsa de valores.
(14) https://www.grupoboticario.com.br/sobre-o-grupo-boticario/
(15) https://www.heinekenbrasil.com.br/informacoes-legais/politica-de-privacidade/
(16) https://www.nestle.com.br/
(17) https://www.investidorpetrobras.com.br/
(18) https://ri.bb.com.br/
(19) https://ri.magazineluiza.com.br/
(20) Um exemplo seria: um construtor tem uma sociedade limitada com capacidade operacional para construir vinte casas de baixo custo em dois meses. Ele é procurado para atender um cliente que exige a construção de quarenta casas no mesmo tempo. Esse construtor não tem capacidade operacional para executar o serviço, mas, ele poderia ter um sócio participante, dentro de uma sociedade em conta de participação, que poderia ajudá-lo a cumprir o contrato. Assim, o construtor, sócio ostensivo, cumpre o contrato com o cliente tendo a ajuda de seu sócio participante, o cliente paga ao sócio ostensivo e o sócio ostensivo reparte os lucros com o sócio participante no âmbito da sociedade em conta de participação.
(21) A legislação brasileira possui três tipos de consórcio: o consórcio societário, previsto na Lei das S.A., o consórcio de consumo, previsto na Lei nº 11.795/2008 e o consórcio de consumidores de energia elétrica previsto na Lei nº 14.300/2022.