Impossibilidade de interpretação extensiva das exceções da impenhorabilidade do bem de família
Walter Neto
O instituto da impenhorabilidade do bem de família foi criado com o objetivo de amparar direitos fundamentais relacionados aos princípios da dignidade da pessoa humana e do direito à moradia. Ele visa proteger patrimônio essencial e evitar que devedores sejam despejados de seus lares por dívidas em geral.
Bem de família é o imóvel residencial da entidade familiar, urbano ou rural e com edificação consolidada ou não. Também se entende como bem de família a terra rural utilizada para plantação que garante a sobrevivência familiar, ou o imóvel ainda em construção, desde que tenha a finalidade de residência familiar, conforme recentemente decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) (1).
Como era de se esperar, a proteção conferida pela Lei nº 8.009/1990 (2) não é absoluta. O próprio dispositivo especifica situações excepcionais, ou seja, traz algumas hipóteses em que a proteção ao imóvel do devedor é excepcionada, mesmo se caracterizado como “bem de família”:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I – Revogado.
II – pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III – pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida;
IV – para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI – por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens;
VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Essas exceções foram trazidas pelo Legislador pensando em proteger interesses mais urgentes se comparados com o direito à moradia, como por exemplo a satisfação do crédito de pensão alimentícia, dívidas do próprio imóvel ou por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Recentemente, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) julgou o Recurso Especial nº 2118730/PR (2022/0127599-0) (3) que envolvia discussão a respeito da exceção prevista no inciso VII do artigo 3º acima transcrito. Ao prever que a impenhorabilidade do bem de família não é oponível ao fiador do contrato de locação, o Legislador buscou proteger a segurança conferida pela fiança em contratos de locação, tornando mais efetiva a garantia prestada pelo fiador.
A ideia que rege essa exceção é assegurar ao locador que a garantia da fiança concedida suportará eventual inadimplemento, tanto do devedor originário (locatário), quanto do fiador. Na hipótese de inadimplência do próprio fiador, o locador poderá alcançar até o seu bem de família para ver satisfeito seu crédito.
Passou-se a discutir a partir daí se essa exceção da impenhorabilidade do bem de família poderia ser estendida também para o devedor solidário no contrato de locação. Ou seja, o devedor solidário também pode ter seu bem de família constrito para satisfação do crédito do locador, ou essa exceção se aplica tão somente para o fiador?
O julgamento do Recurso Especial nº 2118730/PR (2022/0127599-0) dirimiu essa controvérsia e definiu que a exceção da proteção do bem de família deve ser aplicada somente ao fiador do contrato de locação, não podendo ser estendida ao responsável solidário pelo pagamento dos aluguéis.
No caso analisado pelo STJ, a parte recorrente (locador) defendeu que a exceção à impenhorabilidade do bem de família, que alcança o fiador nos contratos de locação, deveria ser estendida àquele que figura nominalmente no contrato como “devedor solidário”.
A parte recorrida, por sua vez, argumentou que a exceção dessa proteção deve ser interpretada restritivamente, por representar uma constrição gravosa à parte que não se sujeita expressamente a essa excepcionalidade, dada a clareza do inciso VII, do artigo 3º da Lei nº 8.009/1990.
O julgamento do REsp 2118730/PR (2022/0127599-0), então, revelou que para o STJ não é possível interpretar extensivamente a exceção entabulada no art. 3º, inciso VII, a fim de equiparar o devedor solidário ao fiador no contrato de locação.
De acordo com os ministros da Quarta Turma do STJ, o escopo da Lei nº 8.009/1990 não é proteger o devedor de suas dívidas, mas sim a entidade familiar, motivo pelo qual as hipóteses permissivas da penhora do bem de família, em virtude do seu caráter excepcional, devem receber interpretação restritiva, não havendo que se falar na possibilidade de estender a exceção do fiador ao responsável solidário.
Como fundamento, os ministros destacaram que a posição jurídica do devedor solidário não se confunde com a do fiador, não podendo, portanto, receberem o mesmo tratamento jurídico por se tratar de figuras distintas no âmbito do contrato de locação.
A reflexão sobre a posição das partes no contrato de locação é fundamental para chegar a essa conclusão. Indo além da interpretação restritiva ou extensiva, não há dúvida de que devedor solidário e fiador possuem participações distintas no contrato de locação. Enquanto o devedor solidário se compromete, pura e simplesmente, ao pagamento da dívida, o fiador garante o adimplemento da obrigação em caso de descumprimento do devedor.
O fundamento da excepcionalidade à proteção do bem de família gira em torno exatamente da garantia do pagamento da dívida em virtude do inadimplemento do locatário. Ou seja, visa conferir maior efetividade à garantia prestada pela fiança, posição que compete ao fiador, e não ao locatário/devedor solidário.
Com isso, firmou-se o entendimento de que a excepcionalidade à proteção do bem de família deve ser interpretada de forma restritiva, especialmente em relação ao fiador do contrato de locação, havendo distinção clara entre este e o devedor solidário, não sendo possível dar o mesmo tratamento jurídico a ambos.
Walter Neto
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) REsp 1.960.026-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, por unanimidade, julgamento em 11/10/2022, DJe 29/11/2022)
(2) Art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/1990: A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: VII: por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
(3) REsp 2118730-PR, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, por unanimidade, julgamento em 14/11/2022, DJe 21/11/2022).