A Praça do Diamante, livro de Mercè Rodoreda, e The Last of Us, série da HBO Max
Letícia Camargos Ferraz, Alexandre Bianchini e Katryn Rocha
De branco de cima abaixo, vestido e anágua engomada, os sapatos brancos que nem leite, os brincos de massa branca, três pulseiras de aro combinando com os brincos e uma bolsinha branca: logo na primeira página de A Praça do Diamante, conhecemos Natália – ou Colometa, a protagonista que nos guiará pelo romance marcado pela vivência catalã da autora.
Em uma festividade na Plaça del Diamant, Natália é convidada a dançar por Quimet, que a impressiona com seu magnetismo; mesmo jovens, a intensa união resulta em um casamento que será provado por eventos históricos que deixaram marcas inevitáveis na Espanha e na sua população.
A Praça do Diamante é uma história de amor; mas não o amor dos românticos. Os dois personagens principais orbitam em mundos completamente diferentes: Quimet vive em um universo fantasioso, de devaneios egocêntricos e sonhos irreais; já Colometa, renuncia suas próprias vontades e mantém os pés no chão – ironicamente, afinal, o apelido designado por seu esposo significa “pombinha” em catalão – para conseguir lidar com os desafios enfrentados no cotidiano de uma família pobre e frágil.
Ao virar a Colometa de Quimet, à medida que cumpria seus caprichos, Natália não percebeu que estaria perdendo também parte de sua identidade e capacidade de sonhar. Não é certo, porém, se ela conseguiria escapar de tal destino. Afinal, quantas Natálias tiveram de virar Colometas, por força da vida?
Apesar de abordar temas complexos, Mercè Rodoreda nos presenteia com uma narrativa lírica – como uma dança na Praça do Diamante. Contudo, o “constante deslumbramento” do olhar infantil de Colometa acaba sucumbindo à existência pesada experimentada pela condição feminina no século XX.
Como visto, Colometa acaba essencialmente sufocada; primeiro pela sua própria vida, depois pelo cotidiano catalão em um lugar tomado pela Guerra Civil Espanhola, que atraiu fome e pobreza. Junto com Colometa, o clima energético e instigante do paraíso mediterrâneo de Barcelona vai sendo afogado por uma onda cinzenta que transforma as ruas da capital catalã em um cenário melancólico que espelha a desesperança e a solidão.
Apesar da narrativa inocente, engana-se quem considerar Colometa uma narradora superficial. Afinal, a personagem faz parte do espectro autobiográfico de Mercè Rodoreda, escritora excêntrica, com uma vida pessoal conturbada: fugiu do fascismo por duas vezes e ousou escrever em exílio no esquecido idioma catalão, proibido durante o regime de Franco. Não à toa, Rodoreda se consagrou como a mais influente autora em língua catalã: os mais diversos recursos literários estão insculpidos nos seus livros de maneira tão intrínseca que acabam se entrelaçando com o próprio enredo de seus romances.
Controlada pelo estilo fluído da autora, Colometa utiliza de insinuações, símbolos, dinâmica de cores e uma série de outros signos para extrair do leitor os mesmos sentimentos que ela não verbaliza. Esse jogo de linguagens, além de provocar os leitores no mundo exterior, também ocupa papel relevante no enredo: enquanto mulher, casada, mãe e submissa, Colometa não tinha voz em sua própria história.
Nessa vida sem palavras, seus verbos são reservados apenas para os seus leitores. Assim, os seus sentimentos mal são notados – até pelos pombos que vivem em sua própria casa. No olhar desinteressado dos outros personagens, Colometa é uma pessoa de cortiça: para ela, no entanto, “se em vez de ser de cortiça com coração de neve tivesse continuado como antes, de carne que dói quando a gente se belisca, não teria conseguido atravessar uma ponte tão alta e tão estreita e tão comprida”.
Colometa, portanto, exilada em sua terra natal, nos teletransporta para dentro de um quadro dominado por pombos patológicos, ruas escuras, lágrimas salgadas; a juventude devastada pela guerra, dores nas pernas, fome de ervilha, luta de classes, resistência, recomeço, resiliência e, enfim, o amor. Nos relata, ainda, todos os pormenores de uma vida maçante, de existência pesada, uma rotina marcada pela miséria e o vazio existencial causado pela fome: e faz um excelente trabalho, pois, ao gritar aos ventos, daqueles gritos que faz voar os pombos e silencia todas as outras vozes, leva o leitor junto à catarse.
Não bastasse, por fim, com esta recomendação apenas nos juntamos ao coro de Gabriel García Márquez, que afirmou que A Praça do Diamante é o enredo do mais belo romance já publicado na Espanha depois da Guerra Civil.
Letícia Camargos Ferraz
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
Alexandre Bianchini
Advogado da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
The Last of Us, série da HBO Max
O que um zumbi representa em nosso imaginário?
A imagem de uma horda de mortos-vivos vem sendo utilizada para representar diferentes ansiedades sociais. Do medo da rebelião de pessoas escravizadas ao retrato do consumismo norte-americano, do ser humano como verdadeiro monstro ao medo literal de uma contaminação em grande escala, em todos eles o fator recorrente é o elemento humano nesses cenários.
Esses seres aterrorizantes da cultura pop frequentemente estão associados a uma paranoia social relacionada ao outro, ao diferente, ao estranho, ao estrangeiro. Não é de se estranhar, portanto, que os monstros de cada uma dessas histórias seja um reflexo das ansiedades da época em que eles surgem.
De certa forma, essa multidão amorfa de seres devoradores de gente não são exatamente pessoas, mas sim representações dos nossos medos mais profundos na forma de pessoas e quando estamos falando de zumbis, especificamente, de uma maneira geral, eles não têm personalidade, histórias de vida ou consciência. Mas, e se eles tivessem? E se os zumbis fossem pessoas?
Em Madrugada dos Mortos de 1978, dirigido por George Romero e roteirizado por Dario Argento, por exemplo, assim como no mundo completamente falho que habitamos, são os grupos minoritários que são perseguidos pelos aparatos repressivos do governo quando o apocalipse chega. Neste ponto, Madrugada dos Mortos deixa de ser só um filme de terror sofisticado que se tornou um clássico cult. É o documentário profético de Romero sobre os Estados Unidos, um país onde autoridades governamentais e rednecks são mais aterrorizantes do que zumbis.
Uma típica história de zumbi, em geral, retrata a empatia como uma fraqueza. Cuidar de uma pessoa infectada é quase sempre visto como um erro fatal. Em um cenário pós-pandemia da COVID-19, será que isso é algo que precisamos levar para o mundo real?
The Last of Us, tanto a série quanto o jogo no qual ela é baseada, se passa num mundo devastado por uma infecção oriunda de um fungo que controla o cérebro dos infectados transformando-os em zumbis. Criada por Neil Druckmann e Craig Mazin (Chernobyl, 2019), a adaptação que tem sido um sucesso de público e de crítica, é a segunda maior estreia da HBO na última década.
Num primeiro momento, The Last of Us parece ser mais uma história típica de zumbis nos moldes em que estamos acostumados. O cenário pós-apocalíptico não oferece esperança, a trama é protagonizada por um homem, Joel, interpretado por Pedro Pascal, que perdeu uma criança de forma violenta, num futuro sombrio em que boa parte da população foi contaminada pela praga e aqueles que sobreviveram tiveram que se habituar a viver num mundo cruel. Tudo parece conduzir os personagens a viverem um ciclo constante de brutalidade e morte sem sentido. Mas, surpreendentemente, não é bem esse o caminho que a trama segue.
A começar pela Ellie, personagem interpretada por Bella Ramsey, que foi mordida e não foi contaminada, algo inédito e que significa a possibilidade de cura. Já no começo, é apresentada uma esperança para o futuro daqueles personagens. Por mais que eles estejam em um cenário cruel, em que é necessário recorrer por vezes à violência, isso não está posto de forma irreversível, sem possibilidade de questionamento ou de mudança. A realidade da história e as decisões dos personagens são colocadas em xeque o tempo todo.
A série também é muito sutil até mesmo para nos apresentar a violência daquele mundo; por mais que esses momentos existam, eles não se sobressaem. Mesmo em um cenário distópico, o diferencial da série está nas histórias das pessoas que escolhem cuidar umas das outras, não só protegendo, mas vivendo e amando. A série de fato é muito boa, em um nível “fora da curva”, porque nos traz um frescor para a típica história de apocalipse zumbi.
Katryn Rocha
Auxiliar de Comunicação do VLF Advogados