O papel do consórcio na geração de energia compartilhada
Alexandre Bianchini Elian Miguel e Pedro Ernesto Rocha
No Brasil existem três tipos de consórcios:
1) Consórcios de consumo: regulados pela Lei nº 11.795/08 e pela Resolução BCB nº 285/23, são os participantes do “Sistema de Consórcios”. São popularmente divulgados por instituições financeiras (dentre as quais se incluem aquelas geridas por grandes redes varejistas, concessionárias de veículos etc.) visando o acesso ao consumo de bens e serviços, constituídos por administradoras e grupos de consórcios. Nesse modelo, em regra, a relação dos administradores com os consorciados é marcada por Contratos de Participação por adesão. É o caso de inúmeros consórcios, dentre os quais podem ser citados: Consórcios Magalu, Consórcios Porto Seguro e Consórcios Santander.
2) Consórcios de sociedades: como visto em nosso Informativo 101/2023 de 28 de fevereiro de 2023 (1), o consórcio de sociedades é estrutura contratual empresarial constituída a partir de um contrato especificamente previsto pela legislação (contrato de consórcio). Ele não tem personalidade jurídica e submete-se à parca regulação, o que o torna instituto bastante flexível em comparação aos outros modelos empresariais disponíveis na lei brasileira (2). Regulados pela Lei nº 6.404/76 (“Lei das S.A.”), dentro dos poucos requisitos dos artigos 278 e 279 (3), os consórcios de sociedades podem ser definidos como sendo a união de sociedades para executar empreendimento específico, não havendo vínculo societário entre os consorciados, os quais se obrigam entre si e perante terceiros apenas nas condições e limites especificados no contrato de consórcio. Assim, em regra, não há algumas tradicionais obrigações societárias (como realizar assembleias gerais, eleger administradores, aprovar demonstrações financeiras etc.), ficando a critério dos consorciados a definição quanto aos direitos e deveres de cada um.
3) Consórcios de consumidores de energia elétrica: regulados pela Lei nº 14.300/22 (“Marco Legal da Geração Distribuída”) e pela Resolução Normativa ANEEL nº 1.059/23 (“Resolução 1.059”), essa modalidade de consórcio se diferencia do consórcio de sociedades em uma condição fundamental: enquanto o consórcio de sociedades deve ser composto por sociedades, o consórcio de consumidores de energia elétrica pode ser composto por pessoas físicas e jurídicas, desde que consumidores, para o fim específico de geração compartilhada de energia.
Em relação ao consórcio de consumidores de energia elétrica, o Marco Legal da Geração Distribuída criou a figura de um consórcio “atípico” ao possibilitar em seu artigo 1º, III a criação de consórcios (aqui, entenda-se: a criação do consórcio previsto na Lei das S.A., e não a criação do consórcio de consumo, previsto na Lei nº 11.795/08), especificamente para reunião de pessoas físicas e/ou jurídicas consumidoras de energia elétrica, visando a geração de energia destinada a consumo próprio, com atendimento de todas as unidades consumidoras pela mesma distribuidora (4).
Nesse sentido, apesar de o Marco Legal da Geração Distribuída permitir a união de consumidores através de outras estruturas jurídicas, como a cooperativa, o condomínio civil voluntário ou edilício ou, ainda, qualquer outra forma de associação civil, o consórcio, por sua baixa regulação, permite flexibilidade e configura-se como opção promissora para os agentes do mercado de geração distribuída de energia elétrica.
A criação do consórcio atípico pelo Marco Legal da Geração Distribuída resultou em cenário normativo que aparentemente revela um conflito entre leis, a saber: (i) a Lei das S.A., que em seu artigo 278 determina que os consórcios deverão ser constituídos por sociedades; e o (ii) Marco Legal da Geração Distribuída, que em seu artigo 1º, III e X indica a possibilidade de criação de consórcios compostos por pessoas físicas ou jurídicas, para fins de geração compartilhada de energia.
Além do conflito acima identificado, é possível perceber, ainda, diferentes posicionamentos dos órgãos responsáveis pelo registro empresarial, que são os responsáveis por registrar a constituição e os atos de um consórcio.
Em decisão ao Recurso ao DREI nº 19974.101230/2022-20, que se deu a partir de recurso interposto ao Departamento de Registro Empresarial e Integração (“DREI”) pela Assessoria Legislativa da Junta Comercial, Industrial e Serviços do Distrito Federal contra decisão do Plenário de Vogais da mesma Junta, o DREI autorizou o registro de alteração de um consórcio para fins de geração distribuída, para incluir condomínios edilícios, que não são pessoas jurídicas, como consorciados.
A decisão contou com dois votos de destaque: o voto do Vogal Relator (“Voto Relator”), que arguiu pelo indeferimento do registro de consórcio tendo condomínios edilícios como consorciados; e o voto do Vogal Revisor (“Voto Revisor”), pelo deferimento do registro. O Voto do Relator demonstrou interpretação mais restrita da Lei das S.A., ao defender que apenas sociedades empresárias podem ser consorciadas, enquanto o Voto do Revisor denotou entendimento mais expansivo, ao acatar a possibilidade da utilização de consórcio nos termos do Marco Legal da Geração Distribuída, para incluir pessoas físicas e jurídicas, destacando a necessidade de convergência da decisão com o determinado pela ANEEL.
A Junta Comercial do Estado de Minas Gerais (“JUCEMG”) tem entendimento semelhante do Voto do Revisor, tendo emitido o Entendimento E163, que determina que
as sociedades, sob o mesmo controle ou não, podem constituir consórcio para executar determinado empreendimento (art. 278 da lei 6.404/76 e art. 90 IN/DREI nº 81/2020) fica facultada a participação de empresários, microempreendedores Individuais - MEI e condomínio edilícios com os seguintes dados: nome empresarial ou designação do condomínio, CNPJ, endereço completo da sede e nome do representante legal (art. 2º e 4º da Instrução de Serviço nº 08/2020/JUCEMG e a Resolução Normativa nº 482 da Aneel).
Ao analisar esse cenário contraditório, é importante considerar o raciocínio de que Marco Legal da Geração Distribuída representa lei específica que deve se sobrepor à lei geral sobre a constituição de consórcios (artigo 278 da Lei das S.A.). Isto é, uma vez que a competência para legislar sobre direito comercial é da União, nos termos do artigo 22, inciso I da Constituição Federal, seria válida a disciplina jurídica específica do consórcio criada pela União no exercício de sua competência legislativa, que, afastando eventual restrição constante da lei geral, passou a autorizar a constituição de consórcios também por pessoas físicas no âmbito das atividades relacionadas à energia elétrica.
Apesar dessa confusão normativa, o consórcio é um instituto legitimado pelo Marco Legal da Geração Distribuída, e que, dada à liberdade das partes para sua estruturação, pode ser uma boa escolha para exploração do mercado de geração compartilhada de energia.
A estruturação de um empreendimento no setor de geração distribuída de energia não é tarefa simples, mas pode ser realizada a partir de estrutura jurídica eficiente em custos e em procedimentos burocráticos.
Para saber mais, entre em contato com a equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados.
Alexandre Bianchini Elian Miguel
Advogado da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
Pedro Ernesto Rocha
Coordenador da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
(1) Saiba mais sobre o regramento societário brasileiro em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=2116.
(2) Na legislação brasileira, o consórcio começa a ter maior utilização a partir do Decreto nº 24.643/1934, conhecido como o “Código das Águas”. A partir de então, figurou em outros normativos como o (i) Decreto-lei nº 869/1938, que regulava os crimes contra a economia popular à época; (ii) a Lei nº 4.137/1962, que mencionava de forma implícita “ajustes, acordos ou convenções entre empresas”; e (iii) a Lei nº 4.728/1965, que regula o Mercado de Capitais Brasileiro. Sobre o tema, cf. GOMES JÚNIOR, Roberto Lincoln de Sousa. Consórcio de Empresas: Fundamentos e Regime de Responsabilidade. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 48-49.
(3) LSA, art. 278: “As companhias e quaisquer outras sociedades, sob o mesmo controle ou não, podem constituir consórcio para executar determinado empreendimento, observado o disposto neste Capítulo. § 1º O consórcio não tem personalidade jurídica e as consorciadas somente se obrigam nas condições previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem presunção de solidariedade. § 2º A falência de uma consorciada não se estende às demais, subsistindo o consórcio com as outras contratantes; os créditos que porventura tiver a falida serão apurados e pagos na forma prevista no contrato de consórcio.”
art. 279: “O consórcio será constituído mediante contrato aprovado pelo órgão da sociedade competente para autorizar a alienação de bens do ativo não circulante, do qual constarão: I - a designação do consórcio se houver; II - o empreendimento que constitua o objeto do consórcio; III - a duração, endereço e foro; IV - a definição das obrigações e responsabilidade de cada sociedade consorciada, e das prestações específicas; V - normas sobre recebimento de receitas e partilha de resultados; VI - normas sobre administração do consórcio, contabilização, representação das sociedades consorciadas e taxa de administração, se houver; VII - forma de deliberação sobre assuntos de interesse comum, com o número de votos que cabe a cada consorciado; VIII - contribuição de cada consorciado para as despesas comuns, se houver. Parágrafo único. O contrato de consórcio e suas alterações serão arquivados no registro do comércio do lugar da sua sede, devendo a certidão do arquivamento ser publicada.”
(4) Marco Legal da Geração Distribuída, art.1º: “Para fins e efeitos desta Lei, são adotadas as seguintes definições: (...) X - geração compartilhada: modalidade caracterizada pela reunião de consumidores, por meio de consórcio, cooperativa, condomínio civil voluntário ou edilício ou qualquer outra forma de associação civil, instituída para esse fim, composta por pessoas físicas ou jurídicas que possuam unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída, com atendimento de todas as unidades consumidoras pela mesma distribuidora”.