A mitigação da coisa julgada em função da jurisprudência
Gabrielle Aleluia e Bruno Costa Carvalho
A legislação processual denomina coisa julgada material como “a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso” (CPC, art. 502). Assim, uma vez transitada em julgado, a decisão passa a ter força de lei entre as partes (CPC, art. 503) e não pode ser novamente decidida, salvo nas hipóteses do art. 505, I e II do CPC, que versam sobre relações de trato continuado, quando há modificação no estado de fato ou de direito, ou nos demais casos previstos em lei, como na ação rescisória (CPC, art. 966). Esta última, por sua vez, consiste em ação autônoma de impugnação, que tem por objetivo, justamente “a desconstituição de decisão transitada em julgado e, eventualmente, o rejulgamento da causa” (1).
Uma das principais implicações da coisa julgada é a segurança jurídica. Assim, a sua desconstituição por meio da ação rescisória só é possível se for demonstrada alguma das hipóteses descritas no art. 966 do CPC.
Recentemente, porém, foram proferidas decisões pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) e pelo Supremo Tribunal Federal (“STF”), que impactam diretamente na autoridade da coisa julgada e, consequentemente, na segurança jurídica.
No Julgamento da Ação Rescisória nº 6015, a 1ª Seção do STJ reconheceu, por quatro votos a três, a possibilidade de ajuizamento da ação rescisória para desconstituir a coisa julgada com base em precedente posterior em sentido contrário, ampliando as hipóteses de seu cabimento.
O caso envolve discussão sobre o pagamento de imposto sobre produtos industrializados (“IPI”) pelas empresas que revendem produtos importados, já que, a despeito de ter se firmado o entendimento de que o imposto é devido no momento do desembaraço aduaneiro e na operação de revenda, em 2014, ao julgar o EREsp 1.411.749, o STJ considerou que o IPI não seria devido nesta segunda hipótese, sendo este entendimento aplicado até 2015.
Em virtude disso, criou-se uma situação em que determinados contribuintes, amparados pelas decisões proferidas neste período, estavam livres do recolhimento do IPI na atividade de revenda, enquanto os demais não. A Fazenda Nacional, então, ajuizou inúmeras ações rescisórias para tentar desconstituir as referidas decisões, sem sucesso, já que o STJ aplicava o disposto na Súmula 343 do STF, segundo a qual “não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.
Já na Ação Rescisória nº 6015, julgada em fevereiro deste ano, a 1ª Seção considerou que, em uma relação de trato continuado, que se renova periodicamente, não faria sentido que estes contribuintes continuassem beneficiados com o não recolhimento do imposto, com prejuízo à livre iniciativa e concorrência, além de ofensa ao princípio da isonomia, a despeito dos precedentes firmados posteriormente, em sentido contrário, inclusive com a fixação de tese em 2020, pelo STF, no julgamento do RE 946.648, quando foi declarada a constitucionalidade da incidência do IPI no desembaraço aduaneiro “e na saída do estabelecimento importador para comercialização no mercado interno”.
A decisão do STJ segue a mesma linha de outra, proferida pelo STF também em fevereiro, e que admitiu, por maioria, a quebra da coisa julgada nas ações tributárias de trato continuado, com aplicação retroativa e sem a necessidade de propositura de ação rescisória, a partir da mudança de entendimento da Corte, o que ocorreria, por exemplo, quando fosse reconhecida a necessidade de recolhimento de determinado tributo cuja inexigibilidade tinha sido declarada anteriormente. O assunto tem repercussão geral reconhecida e diz respeito aos temas 881 e 885, veja:
Tema 881 - Limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisão transitada em julgado.
Relator: MIN. EDSON FACHIN
Leading Case: RE 949297
Descrição: Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos arts. 3º, IV, 5º, caput, II e XXXVI, 37 e 150, VI, c, da Constituição Federal, o limite da coisa julgada em âmbito tributário, na hipótese de o contribuinte ter em seu favor decisão transitada em julgado que declare a inexistência de relação jurídico-tributária, ao fundamento de inconstitucionalidade incidental de tributo, por sua vez declarado constitucional, em momento posterior, na via do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade exercido pelo Supremo Tribunal Federal.
Tema 885 - Efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato continuado.
Relator: MIN. ROBERTO BARROSO
Leading Case: RE 955227
Descrição: Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos arts. 5º, XXXVI, e 102 da Constituição Federal, se e como as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso fazem cessar os efeitos futuros da coisa julgada em matéria tributária, quando a sentença tiver se baseado na constitucionalidade ou inconstitucionalidade do tributo.
Nestes casos, discute-se a possiblidade de cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (“CSLL”) das empresas que estão isentas do tributo em razão de decisões judiciais transitadas em julgado, mesmo tendo sido declarada, posteriormente, a constitucionalidade da CSLL. Ao apreciar a questão, como visto, a Corte admitiu a mitigação da coisa julgada, fixando as seguintes teses:
1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.
2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.
A decisão do STF dispensa o ajuizamento da ação rescisória, divergindo, neste ponto, com aquela do STJ, que apenas amplia as hipóteses de seu cabimento. Além disso, o STJ propôs a modulação dos efeitos da sua decisão, enquanto o STF entendeu que isso não seria necessário, de modo que o tributo poderia ser cobrado a partir da publicação da ata do julgamento que permitiu a cobrança, respeitados os princípios das anterioridades anual e nonagesimal.
De toda forma, ambas as decisões impactam diretamente na segurança jurídica e, principalmente, na atuação do Fisco, já que a coisa julgada poderá ser afastada, até mesmo sem a propositura da ação rescisória, a depender do caso, para que determinado tributo passe a ser exigido de contribuintes até então resguardados por decisão judicial transitada em julgado, em razão da alteração posterior da jurisprudência quanto à sua exigibilidade.
Mais informações sobre o tema podem ser obtidas junto às equipes da área de Contencioso Cível e de Contencioso Tributário do VLF Advogados.
Gabrielle A. de Melo Aleluia
Coordenadora da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Bruno Costa Carvalho
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 421.