Nunca é demais lembrar: o Direito não socorre aos que dormem
Júlia Faria Vasques e Eduardo Metzker Fernandes
O objeto deste informativo é restrito à espécie de prescrição denominada prescrição intercorrente, aquela que se dá “quando o autor de processo já iniciado permanece inerte, de forma continuada e ininterrupta, durante lapso temporal suficiente para a perda da pretensão” (1). A prescrição intercorrente, então, objetiva o cumprimento do princípio da duração razoável do processo, conforme art. 5°, LXXVIII da Constituição Federal (2):
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
No direito civil, a prescrição intercorrente tem lugar reservado na fase de cumprimento e no processo de execução, tanto que o art. 921 do Código de Processo Civil (3) traz em seu texto as hipóteses de suspensão da execução, bem como os requisitos necessários para que seja declarada a prescrição intercorrente:
Art. 921. Suspende-se a execução:
I - nas hipóteses dos arts. 313 e 315, no que couber;
II - no todo ou em parte, quando recebidos com efeito suspensivo os embargos à execução;
III - quando o executado não possuir bens penhoráveis;
III - quando não for localizado o executado ou bens penhoráveis;
IV - se a alienação dos bens penhorados não se realizar por falta de licitantes e o exequente, em 15 (quinze) dias, não requerer a adjudicação nem indicar outros bens penhoráveis;
V - quando concedido o parcelamento de que trata o art. 916.
§1º Na hipótese do inciso III, o juiz suspenderá a execução pelo prazo de 1 (um) ano, durante o qual se suspenderá a prescrição.
§2º Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano sem que seja localizado o executado ou que sejam encontrados bens penhoráveis, o juiz ordenará o arquivamento dos autos.
§3º Os autos serão desarquivados para prosseguimento da execução se a qualquer tempo forem encontrados bens penhoráveis.
§4º O termo inicial da prescrição no curso do processo será a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis, e será suspensa, por uma única vez, pelo prazo máximo previsto no § 1º deste artigo.
§4º-A A efetiva citação, intimação do devedor ou constrição de bens penhoráveis interrompe o prazo de prescrição, que não corre pelo tempo necessário à citação e à intimação do devedor, bem como para as formalidades da constrição patrimonial, se necessária, desde que o credor cumpra os prazos previstos na lei processual ou fixados pelo juiz.
§5º O juiz, depois de ouvidas as partes, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição no curso do processo e extingui-lo, sem ônus para as partes.
§ 6º A alegação de nulidade quanto ao procedimento previsto neste artigo somente será conhecida caso demonstrada a ocorrência de efetivo prejuízo, que será presumido apenas em caso de inexistência da intimação de que trata o § 4º deste artigo.
§ 7º Aplica-se o disposto neste artigo ao cumprimento de sentença de que trata o art. 523 deste Código.
Como visto, a lei processual civil cuidou de positivar as hipóteses de suspensão do processo de execução, os prazos pelos quais o processo pode ficar suspenso e as hipóteses de interrupção do prazo prescricional, ressalvando a necessidade de o credor cumprir os prazos legais e os fixados pelo Juiz.
Há casos em que o prazo prescricional transcorre sem culpa das partes litigantes. Como bem se sabe, o sistema judiciário brasileiro ainda apresenta a morosidade e a ineficiência como dois dos seus grandes desafios.
Atento a essa realidade, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) editou a Súmula nº 106, determinando que “proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da Justiça, não justifica o acolhimento da arguição de prescrição ou decadência” (4).
O entendimento é amplamente adotado nos tribunais estaduais, conforme o recentíssimo precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo, aqui mencionado apenas a título de exemplificação:
APELAÇÃO CÍVEL – Execução Fiscal – IPTU do exercício de 2000 – Sentença que acolheu a exceção de pré-executividade, extinguindo o processo, em razão da prescrição intercorrente do crédito tributário – Reforma do r. decisório – Aplicação da redação original do art. 174, parágrafo único, do CTN – Demora da citação atribuível, exclusivamente, aos mecanismos da justiça – Inexistência de desídia da exequente – Aplicação da Súmula 106 do E. STJ – Prescrição intercorrente afastada – Prosseguimento do feito – Recurso provido. (5)
É importante ressaltar, contudo, que a morosidade do Poder Judiciário não configura salvaguarda para evitar a prescrição indiscriminadamente. Caio Mário da Silva explicita que, mesmo nos casos em que se verifica tal ineficiência, a prescrição intercorrente pode ser declarada quando identificada que a inércia do litigante é fato determinante na sua configuração:
para que se consume a prescrição é mister que o decurso do prazo esteja aliado à inatividade do sujeito, em face da violação de um direito subjetivo. Esta, conjugada com a inércia do titular, implica a cessação da relação jurídica e extinção da pretensão (6).
Alinhado ao posicionamento da doutrina, o STJ tem manifestado entendimento que a prescrição intercorrente não pode ser afastada sob o fundamento de que o Poder Judiciário atuou com morosidade, se essa ineficiência estiver aliada à inércia da parte litigante. Nesse sentido, o Ministro Mauro Campbell Marques esclareceu por ocasião do julgamento do AgInt no REsp n° 1.594.866/DF:
Se é certo que houve desídia na condução dos atos processuais pelo órgão judicial, mostra-se lícito afirmar, de outra parte, que o exequente permitiu que o processo restasse paralisado por longo período de tempo sem externar qualquer manifestação nesse ínterim. Inadmissível tal conduta, mormente porque não se trata de hipótese na qual não foram localizados a executada ou bens passíveis de penhora, mas de situação em que, existente bem penhorado, não se adotaram as medidas indispensáveis à sua expropriação em hasta pública.
Desta forma, transcorrido prazo superior a 05 (cinco) anos de paralisação do feito executivo, sem que tal inércia possa ser atribuível exclusivamente ao Poder Judiciário, merece parcial reforma o acórdão recorrido para reconhecer a consumação da prescrição intercorrente, declarando-se extinta, em consequência, a execução fiscal (7).
O que se conclui, portanto, é que a prescrição intercorrente apenas será afastada pela morosidade do Poder Judiciário nas hipóteses em que a ineficiência constatada no caso concreto seja de culpa exclusiva do poder estatal. Se a parte credora tiver deixado de atuar com diligência, ainda que o Poder Judiciário tenha sido ineficiente, a prescrição intercorrente pode ser reconhecida, extinguindo-se o direito de ação do litigante.
É bom ficar atento!
Júlia Faria Vasques
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Eduardo Metzker Fernandes
Coordenador da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2021. p. 193.
(2) BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1998. 5 out. 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 22 mar. 2023.
(3) BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 14 nov. 2022.
(4) BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 106, Corte Especial, julgado em 26/5/1994, DJ de 3/6/1994, p. 13885.
(5) TJSP; Apelação Cível 0027305-10.2002.8.26.0609; Relator (a): Silvana Malandrino Mollo; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Público; Foro de Taboão da Serra - SAF - Serviço de Anexo Fiscal; Data do Julgamento: 01/03/2023; Data de Registro: 01/03/2023.
(6) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Introdução ao Direito Civil, Teoria Geral do Direito Civil. 30ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 545.
(7) STJ. AgInt no REsp n. 1.594.866/DF, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 22/10/2019, DJe de 28/10/2019.