Procedimentos Especiais de Jurisdição Voluntária no Novo CPC - Parte 1
Leonardo Wykrota
Noções gerais
O Novo Código manteve a clássica divisão entre jurisdição contenciosa e jurisdição voluntária, inspirada nas noções de lide e de atividade declarativa (atuação da vontade da lei). Tais noções seriam típicas da jurisdição contenciosa (1), ao passo que, na jurisdição voluntária, haveria mera atividade administrativa assumidamente isenta de lide e mediante criação de situações jurídicas novas e, por isso, encarada como “gestão pública do interesse privado” (2).
Na concepção clássica (ou administrativista), apenas a jurisdição contenciosa seria jurisdição “propriamente dita” (3), enquanto que a voluntária (“graciosa” ou “não contenciosa”) nem seria jurisdição – por se entender que não haveria a composição de conflito –, nem seria “voluntária”, já que os interessados não teriam opção, senão ingressar no judiciário para tornar eficaz o negócio a ser realizado (4).
Todavia, embora essa seja uma divisão tradicional e aceita majoritariamente pela doutrina, a concepção clássica sofre críticas (5). A esse respeito, Humberto Theodoro Jr. (mesmo adepto à teoria clássica) ensina, com apoio em Andrioli, que parte da doutrina italiana (representada por Allorio, Micheli, Fazzalari e Satta), por exemplo, não rejeitaria o caráter jurisdicional da jurisdição voluntária (6). Já no Brasil, não são poucos os autores de peso que reconhecem uma atividade jurisdicional propriamente dita na jurisdição voluntária (7).
A despeito da polêmica, porém, acredita-se que o mais importante é manter o foco no aspecto que se crê central: por tradição ou conveniência (às vezes ambos) o legislador optou por submeter determinados atos, em sua maioria negociais (8), ao crivo do judiciário, para que haja a integração da vontade das partes. Como bem lembra Sérgio Bermudes, a jurisdição voluntária se destina à “administração de interesses sociais relevantes, integrada, por razões de ordem política, no âmbito da atividade jurisdicional, como poderia daí ser desviada” (9).
O Novo Código, em termos mais gerais, não traz grandes novidades no tema em relação ao seu antecessor. Basicamente, sistematiza melhor o procedimento geral e corrige o equívoco topológico que havia enquadrado, no âmbito das cautelares específicas, procedimentos que são reconhecidamente de jurisdição voluntária (a exemplo, dos protestos, notificações, interpelações, justificação, posse em nome de nascituro, dentre outros).
Assim, permanece válida a distinção entre procedimentos de jurisdição voluntária comuns e especiais feita por José Carlos Barbosa Moreira, considerando que, nos primeiros, haveria manifesta diferenciação entre as fases de postulação e decisão (sendo menos nítida a fase instrutória), ao passo que, nos demais procedimentos, haveria peculiaridades que os tornariam singulares (10).
Procedimento geral (arts. 719 a 725)
O Novo Código dispõe que os procedimentos de jurisdição voluntária serão regidos por seção própria (art. 719, NCPC), com aplicação subsidiária dos dispositivos relativos aos procedimentos típicos (art. 724, parágrafo único, NCPC). Não foram feitas, porém, alterações substanciais em relação à codificação anterior. Desse modo, o procedimento continua a ter início por provocação do interessado ou do Ministério Público, mas incluindo-se agora a Defensoria Pública entre os legitimados (art. 720, NCPC).
Permanece a necessidade de citação dos interessados e de intimação do Ministério Público (nos casos do art. 178, NCPC), para que então se manifestem, mas agora no prazo de quinze dias (art. 721, NCPC) (11).
Manteve-se a audiência da Fazenda Pública nos casos de seu interesse (art. 722, NCPC) e o prazo de dez dias para sentença pelo juiz (art. 723, NCPC). A sentença poderá adotar critérios de equidade (art. 723, parágrafo único, NCPC) e será atacável por apelação (art. 724, NCPC).
O Novo Código manteve, também, o rol de pedidos processados na via comum dos procedimentos especiais de jurisdição voluntária estipulado em seu antecessor (art. 1.112, CPC/1973), com o acréscimo dos pedidos de expedição de alvará judicial e homologação de autocomposição extrajudicial, de qualquer natureza ou valor (12).
Leonardo Wykrota
Sócio responsável pela equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados.
(1) É comum a caracterização da jurisdição a partir da tentativa de conciliação das propostas de Carnelutti e Chiovenda, o primeiro preocupado com a “justa composição da lide” e, o segundo, com a “atuação da vontade concreta da Lei”. O resultado é a definição da jurisdição como função que teria o objetivo de atuar na vontade concreta da lei, para obter a justa composição da lide. Essa tentativa conciliadora, contudo, conforme mostra Alexandre Freitas Câmara, esbarraria no antagonismo entre as posições unitária e dualista do sistema jurídico espelhadas respectivamente por cada uma delas. Assim, a complementaridade seria apenas aparente, pois, enquanto a lide se amolda ao modelo unitário, no qual a sentença é quem cria o direito (a própria resistência à pretensão revelaria a mera expectativa de direito antes do pronunciamento judicial), a atuação da vontade concreta da lei se vincula à noção de que o Estado não cria direitos subjetivos, mas tão somente reconhece direitos preexistentes (Cf. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. v. I, p. 67).
(2) A respeito dessa concepção clássica, confira-se, por exemplo: MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. v. I, p. 89; e THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. v. I, p. 44-45.
(3) THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. v. I, p. 44.
(4) A adoção corrente clássica traz algumas consequências terminológicas, já que, para seus adeptos, não haveria processo, mas mero procedimento, não haveria partes, mas, tão somente, interessados.
(5) Em razão das polêmicas existentes, Alexandre Freitas Câmara chega a dizer que o tema é “um dos mais complexos de toda a ciência processual” (CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. v. I, p. 75).
(6) THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. v. I, p. 44. Sem destaque no original.
(7) Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: RT, 1990. p. 173; BERMUDES, Sérgio. Introdução ao processo civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 23; SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil. 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 1996. v. I, p. 33; GRECO, Leonardo. Jurisdição voluntária moderna. São Paulo: Dialética, 2003. p. 11. Vale conferir também DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 16. ed. Salvador: JusPodivm, 2014. v. I, p. 132-136. Embora não assuma uma posição clara na polêmica, o jovem e renomado processualista baiano se apoia na tese de Leonardo Greco e apresenta um rol de fortes razões para se reconhecer uma atividade jurisdicional no âmbito da jurisdição voluntária.
(8) Conforme será examinado ao longo deste capítulo, a grande maioria dos procedimentos especiais de jurisdição voluntária são de fato tipicamente negócios jurídicos decorrentes da atuação livre da vontade dos interessados. Mas nem todos. Prova disso é o procedimento de interdição que, por interferir na capacidade civil do interditando, não pode ser tipicamente enquadrado no campo negocial. Preciso, portanto, Humberto Theodoro Jr., ao afirmar que “O caráter predominante é de atividade negocial, em que a interferência do juiz é de natureza constitutiva ou integrativa, com o objetivo de tornar eficaz o negócio desejado pelos interessados” (Curso de direito processual civil. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. v. I, p. 44. Sem destaque no original).
(9) BERMUDES, Sérgio. Introdução ao processo civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 23. De fato, a permissão para a separação e divórcio consensuais celebrados perante Cartório, introduzida na codificação anterior (art. 1.124-A, CPC) pela Lei 11.441, de 04.01.2007, para ficar apenas neste exemplo, retrata a importância da opção legislativa na determinação das hipóteses que reclamam a via da jurisdição voluntária.
(10) BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 8.
(11) Anteriormente o prazo era de dez dias (art. 1.105, CPC/1973).
(12) Art. 725. Processar-se-á na forma estabelecida nesta Seção o pedido de: I – emancipação; II – sub-rogação; III – alienação, arrendamento ou oneração de bens de crianças ou adolescentes, de órfãos e de interditos; IV – alienação, locação e administração da coisa comum; V – alienação de quinhão em coisa comum; VI – extinção de usufruto, quando não decorrer da morte do usufrutuário, do termo da sua duração ou da consolidação, e de fideicomisso, quando decorrer de renúncia ou quando ocorrer antes do evento que caracterizar a condição resolutória; VII – expedição de alvará judicial; VIII – homologação de autocomposição extrajudicial, de qualquer natureza ou valor.