Mediação coletiva e suspensão de obrigações como medidas para superar o endividamento: o caso do Grupo Light
Fernanda de Figueiredo Gomes
A exploração da atividade empresarial gera benefícios para a sociedade como um todo, haja vista que promove a geração de renda, de empregos, bem como o estímulo ao desenvolvimento. No entanto, ela também enfrenta dificuldades no seu exercício, o que acarreta crises de diversos tipos que, frequentemente, afetam interesses que ultrapassam os do devedor (1).
Diante da relevância social dessa atividade, bem como dos efeitos nocivos generalizados causados pelas crises, o ordenamento jurídico pátrio cuidou de sistematizar relevantes mecanismos para viabilizar, para as sociedades recuperáveis, a superação da situação de crise. Trata-se dos procedimentos de Recuperação Judicial e Extrajudicial, disciplinados na Lei nº 11.101/2005 (2).
Por meio da Recuperação Judicial e Extrajudicial o devedor tem a possibilidade de negociar coletivamente com os seus credores, dentro dos limites da Lei nº 11.101/2005, para alcançar solução que dê tratamento adequado ao seu passivo e permita o prosseguimento de sua atividade econômica.
Justamente por ter sido elaborada com esse objetivo, a Lei nº 11.101/2005 é repleta de instrumentos que tornam mais fácil para o devedor a superação do momento de crise. É o caso, por exemplo, do stay period (art. 6º, II e III), que suspende as execuções e as constrições do patrimônio do devedor por período de 180 dias após o pedido de recuperação judicial. Em contrapartida, o devedor deve se submeter à jurisdição estatal e à rígida fiscalização da Administração Judicial, suportando o custo de sua remuneração.
O que ocorre, então, quando a sociedade em crise não pode ou simplesmente não quer se submeter a um dos procedimentos previstos na Lei nº 11.101/2005? Seria o caso de empresa pública que a Lei, em seu art. 2º, excluiu de sua aplicação. Seria também o caso de sociedade empresária que não está disposta a arcar com os custos do procedimento ou a se submeter à fiscalização de terceiros.
Apesar de relevante e eficiente, a Recuperação, seja Judicial ou Extrajudicial, certamente não é o único mecanismo à disposição da sociedade empresária que atravessa situação de desequilíbrio econômico-financeiro. De fato, uma das opções para a superação do endividamento seria simplesmente a negociação com os credores, o que poderia ocorrer inclusive por meio de mediação.
Identifica-se no direito brasileiro uma progressiva valorização da chamada justiça multiportas e dos métodos alternativos para a resolução de conflitos. Destaca-se, dentre os métodos autocompositivos, a mediação que, a teor do disposto no art. 1º, parágrafo único da Lei nº 13.140/2015 (3), é “a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia”.
Reconhecendo a relevância do mecanismo, a própria Lei nº 11.101/2005 cuidou de prever a possibilidade de realização de mediação antecedente à Recuperação Judicial para a “negociação de dívidas e respectivas formas de pagamento entre a empresa em dificuldade e seus credores” (art. 20-B, IV). Acrescentou ainda, no §1º, que as empresas que preencham os requisitos legais para requerer Recuperação Judicial poderiam obter tutela de urgência cautelar para suspender as execuções contra elas propostas pelo prazo de até 60 (sessenta) dias, para tentativa de composição com seus credores.
Se a mediação for bem-sucedida, o devedor poderá alcançar consenso com seus principais devedores e reorganizar os pagamentos em fluxo que seja suportado pelo seu caixa, evitando os custos e a burocracia de um procedimento recuperacional.
Essa alternativa para o tratamento da crise empresarial se tornou ainda mais atrativa em decorrência de decisão recentemente proferida por Juiz de Direito da Comarca do Rio de Janeiro. A Light, sociedade que promove a distribuição, geração e comercialização de energia no Rio de Janeiro, obteve tutela cautelar antecedente que prorroga por 30 (trinta) dias os prazos de pagamento de dívidas junto a bancos, distribuidora de valores e um fundo de investimentos para a realização de procedimento de mediação. A decisão ainda admite que o prazo seja estendido por mais um mês (4). De forma similar ao que ocorre com o stay period, a suspensão resguardaria o patrimônio da Light, permitindo que ela continue a arcar com suas despesas usuais enquanto tenta, por meio da mediação, alcançar acordo com os seus credores.
O caso é particularmente interessante porque se trata de concessionária de energia elétrica, que, nos termos do art. 18, da Lei nº 12.767/2012 (5), somente poderia se submeter ao regime recuperacional após a extinção da concessão. Logo, ao menos em tese, não preencheria os requisitos legais para requerer Recuperação Judicial.
Trata-se de decisão inovadora no cenário nacional que, inegavelmente, torna a mediação um mecanismo mais atraente para sociedades que enfrentam cenário de crise, inclusive aquelas que não podem se valer dos institutos da Lei nº 11.101/2005. No entanto, não é isenta de críticas.
Um dos princípios basilares da mediação é autonomia da vontade das partes (art. 2º, V, da Lei 13.140/15). Nesse sentido, as partes deveriam estar livres para participar ou não do procedimento. No entanto, pelo que se depreende do posicionamento divulgado pelos credores da Light, a proposta não teria contado com a aderência dos interessados (6).
Além disso, há de se destacar que inexiste previsão legal que autorize a prorrogação dos prazos para pagamento de forma generalizada, como ocorreu no caso da Light. O que a Lei prevê, convém reiterar, é a suspensão das execuções para sociedades que preenchem os requisitos para o pedido de Recuperação Judicial. Apesar de o processo tramitar em segredo de justiça, ao que parece, a decisão promove interpretação extensiva do art. 20-B, §1º, da Lei nº 11.101/2005.
A decisão, sem dúvidas, é interessante para as sociedades empresárias que atravessam momento de grande endividamento, em especial as que não podem utilizar dos mecanismos da Lei nº 11.101/2005. Diante do seu ineditismo, seria prematuro afirmar que se trata de uma tendência no Poder Judiciário. Em todo caso, a situação traz ainda mais atenção para o cenário nacional de tratamento do endividamento, que está em constante evolução.
Fernanda de Figueiredo Gomes
Advogada da Equipe de Contencioso Cível Estratégico do VLF Advogados
(1) TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Falência e recuperação de empresas, v. 3. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2017.
(2) BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em: 17 abr. 2023.
(3) BRASIL. Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm. Acesso em: 17 abr. 2023.
(4) CORRÊA, Douglas. Justiça suspende cumprimento de obrigações financeiras da Light. Agência Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-04/justica-suspende-cumprimento-de-obrigacoes-financeiras-da-light. Acesso em: 17 abr. 2023.
(5) BRASIL. Lei nº 12.767, de 27 de dezembro de 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/L12767.htm. Acesso em: 17 abr. 2023.
(6) FILGUEIRAS, Maria Luíza. “Light está fraudando a lei e credores vão reagir”, diz advogado de debenturistas. Valor Econômico. Disponível em: https://pipelinevalor.globo.com/negocios/noticia/light-esta-fraudando-a-lei-diz-castro-neves-advogado-de-credores.ghtml. Acesso em: 17 abr. 2023.