A inversão do ônus da prova versus a teoria da verossimilhança preponderante na instrução probatória
Diego Murça e Guilherme Calais
Sabe-se que um dos princípios básicos do consumidor é a facilitação da defesa de seus direitos, com a inversão do ônus da prova em seu favor, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente (art. 6º, VIII, CDC). Pouco se fala, porém, sobre os limites da inversão do ônus da prova em desfavor dos Fornecedores de produtos ou serviços (art. 3º, CDC).
Nas ações que envolvem relações de consumo, a inversão do ônus da prova retira do consumidor a obrigação de demonstrar o fato constitutivo de seu direito, prevista no art. 373, I, CPC, para imputar ao fornecedor o dever de provar o fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito (373, II, CPC) do consumidor. Tratando-se de demanda relacionada a vício de produto ou serviço, por exemplo, o consumidor não teria que comprovar a existência desse vício, pois caberia ao fornecedor provar, (i) que não colocou o produto no mercado; (ii) que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; ou (iii) a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (art. 12, §3º, CDC).
Emerge desta medida, porém, o seguinte questionamento: a inversão do ônus de prova exige demonstração irrefutável da ausência de vício de produto ou serviço?
A resposta não é fácil, sobretudo, porque a legislação brasileira não restringe os limites da inversão do ônus da prova, cabendo ao judiciário, em última análise, avaliar as provas produzidas pelas partes para concluir pela procedência (ou não) dos pedidos iniciais da ação de consumo. Essa tarefa, muitas vezes, não é tão objetiva.
E se a instrução probatória trouxer fortes indícios da inexistência de vício de produto ou serviço, embora sua ocorrência não possa ser inteiramente descartada? O fornecedor ainda deveria ser responsabilizado por não conseguir demonstrar a ausência do vício de maneira irrefutável, apesar da dúvida razoável quanto a sua existência ou origem?
Tem-se, aqui, a possibilidade de aplicação da teoria da verossimilhança preponderante, desenvolvida pelo direito comparado e que, segundo a Ministra Nancy Andrighi (1), propaga a ideia de que a parte que ostentar posição mais verossímil em relação à outra, deve ser beneficiada pelo resultado do julgamento, desde que invocada para servir de lastro à convicção do julgador, sendo imprescindível, porém, que a decisão esteja amparada em elementos de prova constantes dos autos (ainda que indiciários).
As decisões amparadas na verossimilhança preponderante, contudo, ainda são raras, notadamente pela impressão que se tem de que ainda restaria alguma dúvida e não a certeza que se espera dos provimentos jurisdicionais, nem sempre possíveis. Ao lecionar sobre o tema, porém, Marinoni (2005) (2) soluciona a questão de forma bastante elucidativa:
Quando a regra do ônus da prova passa a considerar a convicção diante do caso concreto, ela passa a ser responsável pela formação da convicção, que pode ser de certeza ou de verossimilhança. Ou melhor, pode ser de verossimilhança sem ser de dúvida. Como o convencimento antecede a decisão, não há como aceitar a ideia de que a regra do ônus da prova somente tem importância para permitir a decisão em caso de dúvida, e não para a formação do convencimento. Ora, o juiz que decide com base em verossimilhança não está em dúvida; ao contrário, ele está convencido de que a verossimilhança basta diante das circunstâncias do caso concreto.
Significa que, de acordo com a teoria da verossimilhança preponderante, ainda que invertido o ônus da prova, caso o fornecedor tenha trazido aos autos indícios mais verossímeis da inexistência de vício que o consumidor em relação à sua ocorrência, deve, aquele, ser beneficiado com a resolução da controvérsia de maneira favorável aos seus interesses, ainda que não tenha demonstrado, de maneira irrefutável, a regularidade do produto ou serviço disponibilizado no mercado.
Sob a ótica da teoria da verossimilhança, portanto, ainda que as alegações do consumidor sejam verossimilhantes e a sua hipossuficiência tenha sido verificada, havendo dúvida razoável e sendo mais verossímeis as alegações trazidas aos autos pelo fornecedor, mesmo que o CDC lhe garanta a facilitação dos seus direitos, sua pretensão estaria fadada ao insucesso.
Mais informações sobre o assunto e o entendimento adotado pelos tribunais podem ser obtidos com a Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados.
Diego Murça
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Guilherme Calais
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) STJ, T3, REsp 1.320.295-RS, Min. Nancy Andrighi.
(2) MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da convicção e inversão do ônus da prova segundo as peculiaridades do caso concreto. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 10, jan. 2006.