Limitação da responsabilidade dos cotistas de fundos de investimento: novas regras trazidas pela CVM
Alexandre Bianchini e Fernanda Vidigal
Fundos de investimento são instrumentos jurídicos utilizados para a alocação de recursos de maneira organizada e profissional. Com cada vez mais aderentes na economia global, sua estrutura moderna data de 1920 e, no Brasil, foi utilizada pela primeira vez em 1956, sendo atualmente o país com o maior número absoluto de fundos de investimento registrados (1).
A autarquia responsável pela regulação e fiscalização dos fundos de investimento no Brasil é a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), que exerce suas funções através da publicação de normas (2) e do controle sobre o registro e o funcionamento dos fundos no âmbito nacional.
Até a Lei nº 13.874/2019 (“Lei da Liberdade Econômica”), muito se discutiu a respeito da natureza jurídica dos fundos de investimento. A referida lei, no entanto, encerrou o debate ao conceituar o fundo de investimento como “uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza” (3).
Por se enquadrarem na definição de condomínio, os fundos de investimento não possuem personalidade jurídica própria, ficando o seu patrimônio sob a administração fiduciária de instituição autorizada pela CVM. Apesar disso, desde a publicação da Lei da Liberdade Econômica, a Lei nº 10.406/2002 (“Código Civil”) passou a prever a possibilidade de o regulamento do fundo de investimento determinar a limitação da responsabilidade dos cotistas ao valor de suas cotas (4), protegendo os seus respectivos patrimônios pessoais das obrigações assumidas no âmbito do fundo.
A prerrogativa da limitação de responsabilidade de cotistas, no entanto, somente foi regulada pela CVM por meio da Resolução CVM 175/2022 (“Marco Regulatório dos Fundos de Investimento” ou “Resolução CVM 175”), publicada em 23 de dezembro de 2022 e com vigência a partir de 2 de outubro de 2023 (5).
Até então, a Instrução CVM 555/2014 (“ICVM 555”), que regia o funcionamento dos fundos de investimento em geral e que foi revogada pela Resolução CVM 175, determinava que os cotistas seriam responsáveis por eventual patrimônio líquido negativo do fundo (6). Além disso, a ICVM 555 também fixava a obrigação dos cotistas de aportar recursos adicionais para cobrir eventuais prejuízos em caso de perdas superiores ao capital aplicado (7).
Tais disposições acabavam por desincentivar investimentos, em razão do risco de os investidores serem compelidos a realizar aportes adicionais (situação comumente denominada de “chamada de capital”) caso o patrimônio líquido dos fundos ficasse negativo diante de perdas em operações alavancadas.
Nesse contexto, o Marco Regulatório dos Fundos de Investimento é editado pela CVM com o objetivo de atualizar e consolidar as normas gerais dos fundos de investimento, atendendo às necessidades do mercado, bem como às inovações trazidas pela Lei da Liberdade Econômica, com destaque para as novas regras de responsabilidade dos cotistas a seguir detalhadas.
Conforme determina o art. 18 da Resolução CVM 175 (8), os regulamentos dos fundos de investimento poderão dispor que a responsabilidade dos cotistas é limitada ao respectivo valor subscrito. Desse modo, se determinado investidor tiver aportado R$1.000,00 (mil reais) em um fundo, esta será a quantia máxima que ele poderá perder caso o fundo sofra prejuízos e não possua patrimônio suficiente para cobri-los.
Por outro lado, se o regulamento não limitar a responsabilidades dos cotistas, estes responderão por eventual patrimônio líquido negativo, da mesma forma prevista nas regras da ICVM 555 expostas acima. Nesse caso, a Resolução CVM 175 determina que os cotistas deverão atestar que possuem ciência dos riscos decorrentes da responsabilidade ilimitada (9).
Outra relevante atualização contida no Marco Regulatório dos Fundos de Investimento é a possibilidade de que um mesmo fundo seja composto por diferentes classes de cotas com direitos e obrigações distintos. Para tanto, o administrador deverá constituir patrimônio segregado para cada classe de cotas, de modo que cada patrimônio segregado responda somente por obrigações referentes à respectiva classe (10).
Cada classe será identificada por meio de denominação e inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (“CNPJ”) próprios (11), além de possuir escrituração contábil e demonstrações financeiras segregadas das demais classes (12), garantindo a sua autonomia.
Será possível, inclusive, que o mesmo fundo contenha classes de cotas de responsabilidade limitada e classes de cotas de responsabilidade ilimitada. As classes com limitação de responsabilidade dos cotistas deverão ter a sua denominação acrescida do sufixo “Responsabilidade Limitada” (13), o que confere transparência e clareza para aqueles que se relacionam com os fundos e suas classes, especialmente os credores.
Cumpre notar, no entanto, que a Resolução CVM 175 vedou a criação de classes de categorias de fundos distintas ou, em outras palavras, determinou que todas as classes deverão pertencer à mesma categoria do fundo em si. Por exemplo, um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (“FIDC”) não poderá ter uma classe com política de investimentos de Fundo de Investimento em Ações (“FIA”). A ideia da norma é impedir a alteração do tratamento tributário aplicável em relação ao fundo ou às demais classes existentes.
Ainda, cada classe poderá ser dividida em subclasses, que não terão patrimônios segregados, mas serão diferenciadas por: (i) público-alvo; (ii) prazos e condições de aplicação, amortização e resgate; e (iii) taxas de administração, gestão, máxima de distribuição, ingresso e saída.
Assim, a partir do Marco Regulatório dos Fundos de Investimento, um mesmo fundo poderá ser destinado para atender públicos distintos com objetivos e responsabilidades diferentes. Para ilustrar, será possível estabelecer uma subclasse destinada a investidores qualificados, com aplicação mínima de alto valor e taxa de administração mais atrativa; e outra subclasse para investidores gerais, com aplicação mínima de baixo valor e taxa de administração percentualmente mais elevada.
A flexibilização da responsabilidade dos cotistas e a modulação dos seus direitos e obrigações em classes independentes se destacam como mecanismos fundamentais tanto para os investidores, quanto para os gestores e administradores.
As novas regras garantem maior previsibilidade aos investidores, pois permitem o cálculo do risco assumido nas alocações em fundos de investimento. Paralelamente, aposta-se na simplificação operacional das estruturas e na redução de custos, na medida em que diferentes estratégias de investimentos poderão ser reunidas sob mesma gestão e administração, através de classes com patrimônios segregados e subclasses específicas.
Além disso, os gestores poderão criar produtos cada vez mais personalizados em relação ao público-alvo, seja no que diz respeito aos direitos políticos, seja do ponto de vista econômico, uma vez que até as taxas de administração, ingresso e saída poderão variar entre as subclasses. Haverá, assim, rol de possibilidades, dentro de uma mesma estrutura, para que gestores e administradores negociem e fechem operações e modelos de captação abarcando públicos mais amplos.
A expectativa, portanto, é de que as disposições do Marco Regulatório dos Fundos de Investimento promovam maior alcance e eficiência para a indústria de fundos de investimento.
Alexandre Bianchini
Advogado da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
Fernanda Vidigal
Advogada da Equipe de Consultoria Societária do VLF Advogados
(1) EIZIRIK, Nelson, et al. Mercado de Capitais – Regime Jurídico. 4. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 121-122; BECKER, Bruno Bastos. Fundos de investimento no Brasil: anatomia funcional e análise crítica regulatória. 2019. Tese (Doutorado em Direito Comercial) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019, p. 17-19; e IIFA. Worldwide Regulated Open-End Fund Assets and Flows. Fourth Quarter 2022. Table 7. Disponível em: https://cdn.ymaws.com/iifa.ca/resource/collection/F547F196-E1D9-4F8C-8D4F-7507D8BCAB4C/IIFA_-_Worldwide_Open-End_Fund_Report_-_Q4_2022.pdf. Acesso em: 23 maio 2023.
(2) A título de exemplo, menciona-se os seguintes normativos, atualmente vigentes: Instrução CVM 555/2014, que dispõe sobre a constituição, a administração, o funcionamento e a divulgação das informações dos fundos de investimento; Instrução CVM 472/2008, que dispõe acerca dos Fundos de Investimento Imobiliário; Instrução CVM 578/2016, que regula os Fundos de Investimento em Participações.
(3) Art. 7º da Lei de Liberdade Econômica: “A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a vigorar com as seguintes alterações: (...) Art. 1.368-C. O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza. § 1º Não se aplicam ao fundo de investimento as disposições constantes dos arts. 1.314 ao 1.358-A deste Código.”
(4) Art. 1.368-D do Código Civil: “O regulamento do fundo de investimento poderá, observado o disposto na regulamentação a que se refere o § 2º do art. 1.368-C desta Lei, estabelecer: I – a limitação da responsabilidade de cada investidor ao valor de suas cotas.”
(5) Conforme art. 1º da Resolução CVM 181/23, publicada no Diário Oficial da União em 30 de março de 2023.
(6) Vide art. 15 da ICVM 555.
(7) Vide art. 25 da ICVM 555.
(8) Art. 18 da Resolução CVM 175: “O regulamento pode prever que a responsabilidade do cotista é limitada ao valor por ele subscrito. Parágrafo único. Caso o regulamento não limite a responsabilidade do cotista, os cotistas respondem por eventual patrimônio líquido negativo, sem prejuízo da responsabilidade do prestador de serviço pelos prejuízos que causar quando proceder com dolo ou má-fé.”
(9) Vide art. 29, § 3º da Resolução CVM 175.
(10) Vide art. 5º da Resolução CVM 175.
(11) Conforme entendimento da CVM constante do Ofício Circular Conjunto nº 1/2023/CVM/SIN/SSE: “O Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (“CNPJ”) permanecerá como o principal identificador do fundo e das classes. Já as subclasses serão identificadas por um código concedido pela CVM quando de seu registro. A taxonomia do código para a subclasse será composta por números sequenciais com dígito verificador ao final. Tanto o CNPJ do fundo e das classes quanto o código da subclasse serão gerados assim que o registro for concluído no sistema da CVM.”
(12) Vide art. 66 da Resolução CVM 175.
(13) Vide art. 6º, §3º da Resolução CVM 175.