A utilização da inteligência artificial no meio jurídico: benefícios, desafios e responsabilidades
Daniele Persegani
1) Introdução
A inteligência artificial (“IA”) tem se destacado como uma das tecnologias mais promissoras, impulsionando inovações em diversas áreas, inclusive no campo do Direito. Nos escritórios de advocacia, a aplicação da IA vem ganhando espaço e proporcionando benefícios significativos, enquanto expõe questões sensíveis e preocupantes. Neste artigo, serão explorados os benefícios, riscos e desafios envolvidos no uso da IA no contexto jurídico.
2) O que é IA?
A IA é o ramo da ciência da computação que estuda e desenvolve dispositivos capazes de realizar tarefas que normalmente exigiriam habilidades humanas, como raciocínio, aprendizagem, planejamento e criatividade. Tal tecnologia se baseia em algoritmos complexos e modelos de conhecimento, permitindo que as máquinas coletem, analisem e interpretem grandes volumes de dados, aprendendo com eles. Com isso, esses dispositivos podem identificar informações, resolver problemas e tomar decisões.
Existem diversas técnicas de IA disponíveis no mercado, as mais comuns abrangem redes neurais artificiais, algoritmos genéticos, lógica difusa e aprendizado de máquina. As redes neurais artificiais são modelos inspirados no funcionamento do cérebro humano, enquanto os algoritmos genéticos são utilizados para otimização de soluções. A lógica difusa lida com informações imprecisas ou vagas, e o aprendizado de máquina é um campo que se baseia na capacidade dos sistemas de aprender com os dados que são inseridos e melhorar seu desempenho.
Recentemente, outros modelos foram lançados em larga escala, incluindo o ChatGPT, Stable Diffusion, Whisper, DALL-E 2 e o Google Bard, todos espécies de Chatbot de IA (1). Essas ferramentas produzem resultados baseados em dados e experiências anteriores e seus sistemas permitem manter conversa em tempo real por texto ou por voz.
3) Aplicações da IA em diferentes áreas
Os mecanismos de IA estão cada vez mais presentes no cotidiano, seja por meio de simples assistentes virtuais, como Siri e Alexa, recomendações personalizadas de produtos e serviços, ou até mesmo em ambientes de trabalho, onde seu uso se torna forte tendência. Profissionais de diferentes setores da economia estão recorrendo a essas ferramentas na expectativa de aprimorar os resultados de suas atividades e mais do que isso, ganhar produtividade.
Na área da saúde, por exemplo, essa tecnologia possibilita diagnósticos mais precisos, principalmente na radiologia, através de equipamentos de ressonância magnética que detectam hemorragias intracranianas, ou de tomografias computadorizadas inteligentes, que utilizam algoritmos pré-programados para agilizar as análises. Os tratamentos terapêuticos também se tornam mais eficazes, graças ao cruzamento de informações da vasta bibliografia médica, possibilitando opções mais adequadas ou sob medida para cada caso pesquisado.
No campo da segurança pública, investigações digitais têm possibilitado a coleta de dados de fontes abertas, detectando ameaças de novos ataques em escolas e outras instituições.
Além disso, a adoção de determinadas ferramentas de IA tem sido aplicada com êxito na esfera jurídica. O avanço tecnológico no judiciário pode ser demonstrado por meio da automação na distribuição e organização de processos entre varas e servidores, identificação de conexões entre as partes e outras medidas, contribuindo para melhorar a gestão da administração pública, como será abordado a seguir.
4) Utilização no meio jurídico
No âmbito jurídico, estudo recente (2) revelou que a IA está presente em metade dos tribunais brasileiros, todos com sistemas operacionais ou em desenvolvimento. A maioria desses sistemas foi desenvolvida por equipes próprias. Além disso, magistrados utilizam-se do recurso para comparar decisões e avaliar a precisão de suas sentenças e despachos.
Dentre os sistemas desenvolvidos pelos tribunais, destaca-se o Projeto Victor, que se tornou marco no Judiciário brasileiro e referência internacional. O projeto é resultado da parceria entre o Supremo Tribunal Federal (“STF”) e a Universidade de Brasília (“UnB”), tendo como objetivo auxiliar nas análises dos recursos extraordinários, especialmente na classificação desses recursos em temas de repercussão geral (3) de maior incidência.
O Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), por sua vez, desenvolveu os sistemas Sócrates e Athos. O sistema Sócrates permite a identificação antecipada das controvérsias jurídicas em recursos especiais, apontando, de forma automática os dispositivos de lei questionados e os paradigmas citados para justificar divergências. Já o sistema Athos foi desenvolvido para a localização de processos que podem ser submetidos a julgamento dos recursos repetitivos (4).
Além disso, a IA também promete contribuir com a automação de tarefas repetitivas na rotina dos operadores do Direito, como a revisão de documentos e pesquisas legais, permitindo que esses profissionais se dediquem a questões intelectuais e estratégicas.
No entanto, é importante ressaltar que, ao adotar ferramentas como o ChatGPT, os profissionais devem estar cientes de que o melhor aproveitamento do potencial dessa tecnologia requer o aprimoramento de habilidades pessoais específicas, como o senso crítico para investigar a veracidade do conteúdo produzido pelo ChatGPT e a comunicação clara e objetiva para obter resultados assertivos. Essas habilidades, entre outras igualmente importantes, contribuirão para o sucesso dessa colaboração entre humanos e inteligência artificial.
Contrariamente aos benefícios alcançados, é crucial mencionar que a ética e a responsabilidade são requisitos fundamentais no manuseio dos dispositivos de IA. Isso se deve aos alarmantes riscos de obtenção de informações falsas, violação das regras de privacidade e proteção de dados pessoais e, especialmente, da propriedade intelectual.
Isso porque, nem todas as publicações disponíveis na internet podem ser utilizadas sem a devida autorização, já que certas produções virtuais estão sujeitas aos mesmos princípios, normas e sanções aplicados à reprodução de obras físicas (5), requerendo, portanto, zelo e atenção por parte dos usuários, que deverão citar as fontes consultadas.
Outro aspecto relevante que deve ser observado com cautela é que esses dispositivos, ao basearem-se em diferentes dados históricos ou mesmo em informações produzidas por humanos, podem gerar conteúdos preconceituosos, levando a respostas discriminatórias, racistas, sexistas ou que perpetuam estereótipos negativos, disseminando os chamados “discursos de ódio”.
Um exemplo ilustrativo dos riscos decorrentes do uso da IA ocorreu recentemente, quando um advogado foi multado por litigância de má-fé pelo corregedor-geral da Justiça Eleitoral Ministro Benedito Gonçalvez que entendeu inadequada sua petição redigida sob a forma de “fábula escrita a duas mãos com o ChatGPT” (6).
Esse mesmo advogado interpelou o Conselho Nacional de Justiça (“CNJ”) para manifestar-se sobre a necessidade de proibir juízes de utilizarem o ChatGPT na elaboração de atos processuais. O caso foi encaminhado à Comissão de Tecnologia da Informação e Inovação do CNJ, em decisão proferida em 17 de fevereiro de 2023 (7), pelo Relator Conselheiro João Paulo Schoucair, e aguarda parecer.
Essa provocação, entre outros assuntos de igual polêmica, tem despertado a atenção de Ministros dos Tribunais superiores quanto à urgência de regulamentação desse tema para a sociedade, como manifestou o Ministro do STJ, Ricardo Villas Bôas Cueva, ao participar da abertura do seminário A Construção do Marco Regulatório da Inteligência Artificial no Brasil, que aconteceu no Conselho da Justiça Federal (“CJF”), em 17 de abril passado (8).
5) Desafios e conclusão
O uso da IA apresenta desafios que precisam ser considerados e enfrentados nesse debate necessário sobre sua regulamentação. Alguns desses desafios são:
a) Responsabilidade e ética: Com a capacidade de gerar conteúdos e interagir com os usuários, surge a questão da responsabilidade pelos resultados produzidos. Quem é responsável por eventuais danos causados por informações incorretas ou prejudiciais geradas pelo sistema? É fundamental estabelecer diretrizes claras e regulamentações para garantir a responsabilidade adequada e a ética no uso da tecnologia.
b) Discriminação: A detecção e mitigação desse viés são desafios importantes para garantir a equidade e a igualdade na interação com o sistema.
c) Privacidade e segurança dos dados: Ao processar informações fornecidas pelos usuários para gerar respostas relevantes pode haver violações nesse sentido. Por isso, é essencial garantir a privacidade e a segurança desses dados, protegendo as informações pessoais dos usuários e evitando o mau uso ou o acesso não autorizado a elas.
d) Manipulação e desinformação: Assim como qualquer tecnologia, esses recursos podem ser utilizados de forma maliciosa para disseminar desinformação, manipular opiniões ou espalhar notícias falsas. Essa capacidade de influência levanta preocupações sobre a confiabilidade das informações geradas pela ferramenta e a necessidade de desenvolver mecanismos para combater a manipulação e garantir a veracidade das informações transmitidas.
e) Regulamentação e governança: O rápido avanço da IA especialmente com a disseminação rápida do ChatGPT exigem regulamentação adequada e governança eficaz. É necessário estabelecer diretrizes éticas, políticas de uso responsável, padrões de transparência e supervisão dos interessados, para garantir minimamente que a tecnologia seja utilizada de maneira benéfica e em conformidade com os valores sociais e legais.
Em resumo, a utilização da IA trouxe avanços significativos a diversos setores e ao judiciário, em particular, e otimizou as práticas de gestão dos Tribunais. No entanto, de forma geral, apresenta desafios e responsabilidades que precisam ser examinados com urgência, dada a rapidez de sua disseminação.
Enfrentar esses desafios requer abordagem colaborativa entre governos, empresas, especialistas em IA e a sociedade em geral. A discussão, conscientização e implementação de medidas adequadas, baseadas na ética, transparência e integridade, são fundamentais para maximizar os benefícios e mitigar os riscos do uso da IA na sociedade.
Existem alguns Projetos de Lei sobre a matéria já em curso no Congresso Nacional e, entre eles, citamos o Projeto de Lei nº 21/2020 (9), de autoria do Deputado Federal Eduardo Bismarck (PDT-CE), que propõe a criação do marco legal do desenvolvimento e uso da IA pelo poder público, por empresas, entidades diversas e pessoas físicas, cujo texto tramita na Câmara dos Deputados. Além disso, o recente Projeto de Lei nº 2338/2023, datado de 3 de maio de 2023, de autoria do Senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), dispõe sobre o uso da IA e atualmente se encontra no Plenário do Senado Federal (10).
O VLF sempre atento à evolução tecnológica está monitorando as relevantes discussões jurídicas sobre o uso cada vez mais frequente da IA no âmbito do Direito e os trâmites de sua regulamentação, especialmente por meio das equipes de consultoria, legal design e proteção de dados pessoais.
Daniele Persegani
Advogada da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
(1) Chatbot de Inteligência Artificial é um sistema de conversação escrita que analisa as informações fornecidas pelo usuário, processando-as com grande volume de dados dispostos na internet para dar prosseguimento ao atendimento e resolver as questões apresentadas.
(2) Cf. relatório produzido pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (CIAPJ/FGV): SALOMÃO, Luis Felipe. Tecnologia Aplicada à Gestão dos Conflitos no Âmbito do Poder Judiciário Brasileiro. Disponível em: https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/estudos_e_pesquisas_ia_1afase.pdf. Acesso em: 18 mai. 2023.
(3) Repercussão Geral é o instrumento processual que possibilita ao STF selecionar os Recursos Extraordinários que serão analisados, de acordo com os critérios de relevância jurídica, política, social ou econômica. O uso desse filtro recursal resulta em diminuição do número de processos encaminhados ao STF, uma vez que, constatada a existência de repercussão geral, a Corte analisa o mérito da questão e a decisão proveniente dessa análise será aplicada posteriormente pelas instâncias inferiores, em casos idênticos. (Fonte: Glossário Jurídico do STF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/glossario.asp. Acesso em: 18 mai. 2023.)
(4) Tema ou Recurso Repetitivo é o recurso julgado pela sistemática descrita no Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), em que o STJ define uma tese que deve ser aplicada aos processos em que discutida idêntica questão de direito. (Fonte: Precedentes Qualificados do STJ. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Precedentes/informacoes-gerais/recursos-repetitivos#:~:text=Tema%20ou%20Recurso%20Repetitivo%20(RR)&text=%E2%80%8B%C3%89%20o%20recurso%20julgado,discutida%20id%C3%AAntica%20quest%C3%A3o%20de%20direito. Acesso em: 18 mai. 2023.)
(5) BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm. Acesso em: 18 mai. 2023.
(6) Ação de Investigação Judicial Eleitoral (11527) nº 0600814-85.2022.6.00.0000. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2023/4/96482C8B855BCD_decisao-tse-advogado-chatgpt.pdf. Acesso em: 18 mai. 2023.
(7) Procedimento de Controle Administrativo 0000416-89.2023.2.00.0000. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2023/4/3277B0EB9671E0_despachoCNJ.pdf. Acesso em: 18 mai. 2023.
(8) Ministro Villas Bôas Cueva aponta urgência na regulamentação da inteligência artificial no Brasil. STJ. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/17042023-Ministro-Villas-Boas-Cueva-aponta-urgencia-na-regulamentacao-da-inteligencia-artificial-no-Brasil.aspx. Acesso em: 18 mai. 2023.
(9) Projeto de Lei nº 21, de 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2236340. Acesso em: 18 mai. 2023.
(10) Projeto de Lei nº 2338, de 2023. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233. Acesso em: 18 mai. 2023.