Corte Especial do STJ entende pela possibilidade de relativizar a impenhorabilidade do salário do devedor para pagamento de dívida não alimentar
Rafael de A. Rodrigues Queiroz e Eduardo Metzker Fernandes
A penhora é instrumento judicial revestido de extrema importância para o processo de execução, na medida em que dá o primeiro impulso para satisfação do credor, sujeitando os bens do devedor ao pagamento da dívida.
O art. 833 do Código de Processo Civil (“CPC”) enumerou vários casos de bens patrimoniais disponíveis que são impenhoráveis, como os vestuários, os livros, as utilidades domésticas e os vencimentos, subsídios, soldos e salários, entre outros. As limitações legais à penhorabilidade encontram explicação em razões diversas, de origem ético-social, humanitária, política ou técnico-econômica e revelam a preocupação do legislador em preservar as receitas alimentares do devedor e de sua família (1).
Este informativo analisará os bens declarados impenhoráveis constantes do inciso IV do art. 833 do CPC:
Art. 833. São impenhoráveis: (…)
IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º.
Como se vê, a lei estabeleceu a impenhorabilidade do salário e das remunerações do devedor, trazendo ressalva expressa no §2º do art. 833 do CPC, que prevê a não aplicação da imunidade em duas hipóteses: (i) para o pagamento de prestação alimentícia, independentemente da remuneração recebida; e (ii) para o pagamento de quaisquer outras dívidas, desde que os valores recebidos pelo devedor sejam excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais.
Contudo, em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) julgou o EREsp 1874222/DF, entendendo pela relativização da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial para pagamento de dívida não alimentar, independentemente do montante recebido pelo devedor, desde que preservado valor que assegure subsistência digna para ele e sua família, quando restarem inviabilizados outros meios executórios que garantam a efetividade da execução (2).
Segundo o Ministro Relator João Otávio de Noronha
ao suprimir a palavra “absolutamente” no caput do art. 833, o novo Código de Processo Civil passa a tratar a impenhorabilidade como relativa, permitindo que seja atenuada à luz de um julgamento principiológico, em que o julgador, ponderando os princípios da menor onerosidade para o devedor e da efetividade da execução para o credor, conceda a tutela jurisdicional mais adequada a cada caso, em contraponto a uma aplicação rígida, linear e inflexível do conceito de impenhorabilidade.
Ao relativizar texto expresso de lei, o precedente valoriza o princípio dignidade da pessoa humana, que resguarda tanto o devedor quanto o credor.
Além disso, o STJ adotou interpretação teleológica da previsão contida no §2º do art. 833 do CPC, uma vez que a fixação do limite de 50 salários-mínimos destoa da realidade brasileira, o que tornaria, segundo o Ministro Relator, o dispositivo praticamente inócuo.
Embora não tenha sido citado pela Corte Superior, também pode-se dizer que a decisão possui conexão com o princípio da duração razoável do processo. Isso porque a finalização do processo de execução, com o pagamento da dívida pelo devedor, tem sido o grande gargalo da justiça brasileira. Mitigar a disposição contida no CPC revela mais uma tentativa do STJ de promover o descongestionamento das execuções em curso no país, uma vez que é direito de todo indivíduo que provoca o judiciário para dirimir seus conflitos obter, em tempo hábil, prestação jurisdicional satisfatória e adequada.
A decisão proferida em sede de embargos de divergência é capítulo importante na solução de uma controvérsia existente há anos jurisprudência do STJ, pois tem o condão de uniformizar o entendimento da corte superior no sentido de permitir a penhora do salário do devedor, ainda que inferior a 50 salários-mínimos.
Com efeito, a Corte Superior fixou a tese de que tal medida só é possível em casos excepcionais e quando fica garantido o mínimo necessário para a subsistência digna do devedor e de sua família.
Todavia, o STJ não delimitou quais são os critérios a serem analisados no caso concreto para verificar quanto do salário pode ser penhorado, abrindo espaço para um novo dilema: o que deve ser considerado garantia da subsistência digna do devedor e de sua família?
Ao longo do seu voto, o Ministro Relator faz menção à garantia do mínimo existencial do devedor e seus dependentes, sem, entretanto, explicar com mais detalhes o significado do termo.
Ainda que o precedente não tenha abrangido todas as nuances da penhora efetivada sobre salários e rendimentos, não há dúvida de que se trata de avanço na almejada satisfação e muitas vezes dificultada satisfação do crédito dos exequentes.
Rafael de Albuquerque Rodrigues Queiroz
Trainee da Equipe de Contencioso Cível Estratégico do VLF Advogados
Eduardo Metzker Fernandes
Coordenador da Equipe de Contencioso Cível Estratégico do VLF Advogados
(1) THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. v. 3. 55 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
(2) EREsp n. 1.874.222/DF, relator Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, julgado em 19/4/2023, DJe de 24/5/2023.