Em decisão inédita, STJ indefere homologação de sentença arbitral estrangeira anulada no país de origem
Lucas Sávio Oliveira e Rachel Rezende
De acordo com a Lei Brasileira de Arbitragem (1), é considerada estrangeira a sentença arbitral que tenha sido proferida fora do território nacional (2). Nesse caso, para que produza seus efeitos no Brasil, ela terá de ser homologada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) (3). Todavia, o que ocorre caso a sentença tenha sido anulada pelo poder judiciário do país em que foi prolatada?
A matéria em questão, nunca antes debatida pelos tribunais superiores brasileiros, foi objeto da Sentença Estrangeira Contestada nº 5.782/AR, que tramitou perante o STJ (4). Em recente decisão, a Corte Especial do Tribunal, por unanimidade, indeferiu o pedido de homologação, que era relativo a uma sentença arbitral proferida na cidade de Buenos Aires, na Argentina, anulada pela Câmara de Apelações do país.
O pedido de homologação foi apresentado pela EDF International S/A (EDFI), requerente no procedimento arbitral movido contra as sociedades empresárias ENDESA International S/A (ENDESA) e YPF S/A (YPF), que correu de acordo com o regulamento de arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI). O litígio tinha por objeto um contrato de compra e venda de ações celebrado em março de 2001 pela EDFI com a ENDESA e a ASTRA Compañia Argentina de Petróleo S/A, posteriormente incorporada pela YPF. O contrato previa revisão dos valores pactuados em caso de desvinculação do tipo de câmbio oficial do peso argentino em relação ao dólar norte-americano, à época regido pela paridade de 1 para 1 em razão da Lei de Conversibilidade na Argentina.
A alegação da EDFI foi de que, em dezembro de 2001, devido à deflagração de uma crise econômica na Argentina, alterou-se o regime de câmbio entre o peso argentino e o dólar em razão de atos do Banco Central da República Argentina, o que a levou a instaurar o procedimento arbitral pleiteando o reajuste dos valores contratuais. A sentença arbitral, que deferiu parcialmente o pedido da EDFI em 22 de outubro de 2007, foi posteriormente anulada definitivamente pela Câmara Nacional de Apelações do Comércio argentina em 9 de dezembro de 2010. A referida Câmara entendeu que os árbitros julgaram por equidade uma arbitragem que era de direito ao ignorarem que a Lei de Conversibilidade argentina permanecia em vigor quando dos atos do Banco Central argentino e que, portanto, não houve desvinculação das moedas. Desconsiderando a anulação na Argentina, a EDFI apresentou em 7 de junho de 2011 o pedido de homologação da sentença arbitral perante o STJ.
Como bem ressaltado pelo relator, Ministro Jorge Mussi, não cabe ao STJ, no procedimento homologatório, adentrar a análise de mérito da sentença estrangeira, devendo ater-se somente à verificação dos requisitos estabelecidos pelo Regimento Interno do STJ (5), pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (6) e, em caso de sentença arbitral, pela Lei Brasileira de Arbitragem (7).
Sendo assim, entendeu o STJ que, ainda que os requisitos formais para a homologação da sentença arbitral tenham sido cumpridos - quais sejam, a juntada de todos os documentos necessários na petição inicial, a sentença arbitral ter sido proferida por autoridade competente, as partes terem sido devidamente citadas e a sentença ter transitado em julgado - a anulação da sentença arbitral pela autoridade competente do país onde foi proferida obsta sua homologação.
Interessante salientar que, para embasar o posicionamento adotado, o voto trouxe disposições não apenas da Lei Brasileira de Arbitragem, mas também dispositivos de diversos tratados nos quais o Brasil é parte signatária.
A Convenção de Nova Iorque (8) em seu art. V(1)(e), a Convenção do Panamá (9) em seu art. 5(1)(e)e a Lei de Arbitragem, art. 38, VI, preveem que a homologação de sentença estrangeira será denegada caso ela tenha sido anulada pelo órgão competente do país onde foi proferida.
Outro instrumento internacional analisado no caso foi o Protocolo de Las Leñas (10). Em parecer apresentado em 2012, o Ministério Público Federal (MPF) argumentou que, de acordo com o art. 20(e) do referido Protocolo, a regra é a eficácia extraterritorial das sentenças no Mercosul. Isto é, as sentenças proferidas em um Estado-Membro possuem eficácia plena em quaisquer dos outros Estados-Membros, conferindo jurisdição internacional aos respectivos julgadores. Dessa maneira, não haveria que se falar em possibilidade de nova discussão sobre a anulação da sentença arbitral pelo STJ. Tal entendimento foi acompanhado pelo STJ.
O parecer do MPF enfrenta uma questão suscitada pela ENDESA, qual seja a de que a Convenção de Nova Iorque teria revogado as disposições do Protocolo de Las Lenãs. Segundo o MPF, não há que se alegar a revogação em razão do princípio da especialidade. Ainda que o entendimento quanto à não revogação seja correto, a razão para tanto ultrapassa a mera incidência do princípio da especialidade. Na realidade, existe expressa previsão na própria Convenção de Nova Iorque, em seu art. VII(1), que dispõe que a Convenção não afetará a validade de acordos multilaterais que tratem do reconhecimento e execução de sentenças arbitrais celebrados pelas partes signatárias. A relação da Convenção de Nova York com o Protocolo de Las Leñas, bem como com outros tratados sobre o tema, é de convivência e vigência simultânea (11).
Ainda nesse sentido, o art. 34 da Lei de Arbitragem prevê que a sentença arbitral estrangeira será reconhecida ou executada no Brasil de conformidade com os tratados internacionais com eficácia no ordenamento interno e, na sua ausência, estritamente de acordo com os termos da própria Lei. Sendo, portanto, a Convenção de Nova Iorque um texto internacional que trata de maneira específica sobre o reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, esta prevalece sobre o direito interno (12).
Ressalta-se que diante dessa variedade de leis aplicáveis à homologação de sentenças estrangeiras, entende-se que a lei aplicável deve ser aquela mais favorável à homologação de determinada sentença, a critério do requerente. Ademais, é comumente vedada a prática denominada “cherry-picking”, isto é, a adoção das partes mais favoráveis de cada lei aplicável (13).
Insta destacar que o parecer proferido pelo MPF no caso em análise levanta outra importante discussão, que envolve a interpretação do art. V(1)(e) da Convenção de Nova Iorque. Na versão em inglês do caput do referido artigo, que trata do requisito de que a sentença não tenha sido anulada no país de origem, lê-se: “Recognition and enforcement may be refused at the request of the party against whom it is invoked, only if…”.
Segundo o MPF, a utilização do verbo “may”, que em tradução literal significa “pode”, pode levar à interpretação de que mesmo se a parte fizer prova de que a sentença tenha sido anulada, o tribunal competente ainda teria a discricionariedade para decidir se a sentença anulada poderia ser homologada ou não (14). Contudo, tal entendimento é contestado pelo MPF, o que é acompanhado pelo STJ.
Como bem explicado no parecer do MPF, a Convenção de Nova Iorque também tem uma versão original redigida em francês, onde lê-se “La reconnaissance et l’exécution de la sentence ne seront refusées, sur requête de la partie contre laquelle elle est invoquée, que si...”. O texto em francês, portanto, determina que é dever da autoridade competente indeferir a homologação caso a sentença tenha sido anulada, não dando margens a interpretações contrárias. Ainda, argumenta o MPF que o verbo “may”, em sua acepção legal, significa “poder-dever”, estabelecendo uma obrigatoriedade à recusa da homologação caso a sentença tenha sido anulada, e não mera faculdade.
Esta dúvida, sobre se a recusa da homologação seria obrigatória ou apenas facultativa nos termos do art. V(I)(e) da Convenção de Nova Iorque, já levou diversas cortes locais a admitir a homologação de sentenças estrangeiras anuladas nos locais em que foram proferidas, em decisões vistas com perplexidade pela comunidade internacional, como nos casos Hilmarton, na França, e Chromalloy, nos Estados Unidos (15).
Foi nesse contexto que, em 2008, na Conferência do International Council for Commercial Arbitration – ICCA, o Professor Van Der Berg propôs uma modernização da Convenção de Nova Iorque, sendo que uma das mudanças seria a nova redação do seu art. V(I). Nessa nova redação o verbo “may” seria substituído pelo verbo “shall” (“Recognition and enforcment of the award shall be refused...”), o qual denota obrigatoriedade (16). Assim, o dispositivo tornaria ainda mais evidente a recusa da homologação e execução da sentença em caso de sua anulação no local onde foi proferida.
Apesar de louvável o esforço do STJ em basear seu entendimento nos instrumentos internacionais citados, cumpre ressalvar que outros tratados ratificados pelo Brasil, e aplicáveis ao caso, foram esquecidos, sendo um no âmbito interamericano e outro no âmbito do Mercosul.
Irmã da Convenção do Panamá, por também ter sido adotada em uma Conferência Especializada Interamericana sobre o Direito Internacional Privado (CIDIP), auspiciada pela Organização dos Estados Americanos (OEA), a Convenção Interamericana Sobre Eficácia Extraterritorial de Sentenças e Laudos Arbitrais Estrangeiros (17), também estabelece critérios para o reconhecimento e execução. Dentre eles está o disposto no art. 2(h), segundo o qual às sentenças estrangeiras será conferida eficácia extraterritorial caso tenham “caráter de executáveis” no Estado onde houverem sido proferidas. Ora, uma sentença anulada em um Estado nunca poderá ser nele executada, sendo a conclusão a mesma adotada pelo STJ.
O outro instrumento não lembrado foi o Acordo sobre Arbitragem Comercial Internacional do Mercosul (18). Respeitando a existência de normas anteriores sobre execução de sentenças arbitrais estrangeiras, o referido Acordo estabelece em seu artigo 23 que serão aplicáveis, no que for pertinente, as disposições da Convenção do Panamá, o Protocolo de Las Leñas e a Convenção Interamericana Sobre Eficácia Extraterritorial de Sentenças e Laudos Arbitrais Estrangeiros. Além de evitar nova sobreposição de normas sobre uma mesma matéria, e discussões sobre possíveis revogações, a técnica legislativa utilizada ainda tem o mérito de consolidar as regras aplicáveis entre os Estados do Mercosul.
Ao comparar as normas aplicáveis ao reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras no Brasil (19), o que se tem é uma convergência no entendimento de que a anulação da sentença no Estado em que foi prolatada obsta a homologação por parte do STJ. Ao reconhecer este fato, e indeferir o pedido em comento, o Tribunal traz segurança jurídica e reafirma os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em matéria de arbitragem.
Lucas Sávio Oliveira
Advogado da equipe de Consultoria Internacional e Arbitragem do VLF Advogados.
Rachel Rezende
Estagiária da equipe de Consultoria Internacional e Arbitragem do VLF Advogados.
(1) Lei n° 9.307, de 23 de setembro de 1996, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9307.htm, acesso em 12 de janeiro de 2016.
(2) Art. 34, parágrafo Único da Lei Brasileira de Arbitragem.
(3) Art. 35, Lei Brasileira de Arbitragem.
(4) STJ, SEC nº 5.782/AR, Rel. Ministro Jorge Mussi, julgado em 02/12/12015, DJe 16/12/2015, cujo acórdão está disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1472540&num_registro=201101290847&data=20151216&formato=PDF, acesso em 12 de janeiro de 2016
(5) Artigos 216-A a 216-N do Regimento Interno do STJ, conforme alterado pela Emenda Regimental n. 18, de 2014, disponível em http://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional//index.php/Regimento/article/view/532/487, acesso em 12 de janeiro de 2016.
(6) Artigos 15 e 17 do Decreto-lei n° 4.657, de 4 de setembro de 1942, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm, acesso em 12 de janeiro de 2016.
(7) Artigos 34 a 40 da Lei Brasileira de Arbitragem.
(8) Convenção sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, assinada em Nova Iorque em 10 de junho de 1958, internalizada pelo Decreto n° 4.311, de 23 de julho de 2002, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4311.htm, acesso em 13 de janeiro de 2016.
(9) Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial Internacional, de 30 de janeiro de 1975, internalizada pelo Decreto n°1.902, de 9 de maio de 1966, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1902.htm, acesso em 13 de janeiro de 2016.
(10) Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa, firmado em 27 de junho de 1992, internalizado no Brasil pelo Decreto n° 2.067, de 12 de novembro de 1996, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/d2067.htm, acesso em 13 de janeiro de 2016. O texto integral do Protocolo de Las Leñas está disponível em http://www.mercosur.int/msweb/Normas/normas_web/Decisiones/PT/CMC_1992_Dec_005_PT_ProtocoDasLe%C3%B1as.PDF, acesso em 13 de janeiro de 2016.
(11) PEREIRA, César A. Guimarães. A Interação entre a Convenção de Nova Iorque (CNY) e o Direito Interno Brasileiro: Roteiro para Compreensão do Tema no Âmbito da Homologação de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, 2012, p. 3, disponível em www.justen.com.br/pdfs/IE69/IE69_not_cesar.pdf , acesso em 11 de janeiro de 2016.
(12) LEE, João Bosco. A homologação de Sentença Arbitral Estrangeira: A Convenção de Nova Iorque de 1958 e o Direito Brasileiro de Arbitragem. In: LEMES, Selma Ferreira (Coord). Arbitragem. Estudos em Homenagem ao Prof. Guido Fernando Silva Soares, in memoriam. 2007. p. 184.
(13) PEREIRA, César A. Guimarães. A Interação... Cit. p. 3.
(14) A versão em português adotada pelo Brasil, constante no Decreto n° 4.311, gera a mesma confusão por ser uma tradução do texto em inglês da Convenção de Nova Iorque: “O reconhecimento e a execução de uma sentença poderão ser indeferidos, a pedido da parte contra a qual ela é invocada, unicamente se...”
(15) PINTO, José Emílio Nunes; DA FONSECA, Rodrigo Garcia. Convenção de Nova Iorque: Atualização ou Interpretação?, in: Revista de Arbitragem e Mediação - RArb 18, 2008, p. 63.
(16) PINTO, José Emílio Nunes; DA FONSECA, Rodrigo Garcia. Convenção de Nova Iorque...Cit. p. 62.
(17) Internalizada no Brasil pelo Decreto 2.411, de 2 de dezembro de 1997, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1997/d2411.htm, acesso em 13 de janeiro de 2016. O texto integral em português da Convenção está disponível em http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/b-41.htm, acesso em 13 de janeiro de 2013.
(18) Internalizado no Brasil pelo Decreto 4.719, de 4 de junho de 2003, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/D4719.htm, acesso em 13 de janeiro de 2013.
(19) No caso de uma sentença proferida na Argentina, como visto, a Lei Brasileira de Arbitragem, a Convenção de Nova Iorque, a Convenção do Panamá, a Convenção Interamericana Sobre Eficácia Extraterritorial de Sentenças e Laudos Arbitrais Estrangeiros, o Protocolo de Las Leñas e o Acordo sobre Arbitragem Comercial Internacional do Mercosul.