A transferência de imóvel a descendentes e a fraude à execução
Leila Mendes e Gabrielle Aleluia
A fraude à execução é manobra do executado que visa subtrair à execução bens de seu patrimônio (1), com o objetivo de frustrá-la. Na hipótese de alienação de bens em fraude à execução, o art. 792 do Código de Processo Civil (“CPC”) possibilita ao exequente a impugnação da alienação supostamente fraudulenta. Se ela for acolhida, a alienação será considerada ineficaz em relação ao credor, nos termos do art. 792, § 1º, do CPC (2).
Há, porém, preocupação em se proteger o terceiro, adquirente de boa-fé. Assim, para o reconhecimento da fraude à execução, a jurisprudência exige a comprovação da sua má-fé, ou seja, que ele tinha ciência da demanda contra o devedor e que a alienação era capaz de reduzi-lo à insolvência (3).
Em relação à ciência da execução, estipulou-se que ela seria presumida em caso de averbação da sua existência ou da própria penhora na matrícula do imóvel. Nesse sentido, aliás, a Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) estabelece que “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
O assunto também foi objeto do Tema Repetitivo 243, por meio do qual firmou-se a seguinte tese:
Para fins do art. 543-c do CPC, firma-se a seguinte orientação:
1.1. É indispensável citação válida para configuração da fraude de execução, ressalvada a hipótese prevista no § 3º do art. 615-A do CPC.
1.2. O reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente (Súmula n. 375/STJ).
1.3. A presunção de boa-fé é princípio geral de direito universalmente aceito, sendo milenar parêmia: a boa-fé se presume; a má-fé se prova.
1.4. Inexistindo registro da penhora na matrícula do imóvel, é do credor o ônus da prova de que o terceiro adquirente tinha conhecimento de demanda capaz de levar o alienante à insolvência, sob pena de torna-se letra morta o disposto no art. 659, § 4º, do CPC.
1.5. Conforme previsto no § 3º do art. 615-A do CPC, presume-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens realizada após averbação referida no dispositivo.
Recentemente, porém, a Terceira Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 1.981.646/SP, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi (4), entendeu que a transferência de um imóvel pelo devedor à filha menor de idade, capaz de torná-lo insolvente, caracteriza fraude à execução, independentemente da averbação da execução ou da penhora na matrícula do imóvel ou de prova de má-fé.
A Ministra Nancy Andrighi entendeu que, nesse caso, a má-fé do devedor seria evidente, por estar buscando blindar o seu patrimônio dentro da própria família, de modo a fraudar a execução. Assim, sequer haveria de se considerar a existência ou não de má-fé do descendente-adquirente, que seria insignificante face à flagrante má-fé do devedor-transmitente.
A decisão é objeto de Embargos de Divergência (5) no STJ, mas a expectativa é que o entendimento do acórdão seja mantido.
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Leila Mendes
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Gabrielle Aleluia
Advogada e Coordenadora da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 879.
(2) CPC, art. 792, § 1º: A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente.
(3) TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
(4) Ementa: PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. FRAUDE À EXECUÇÃO. DAÇÃO EM PAGAMENTO DE IMÓVEL PELO DEVEDOR INSOLVENTE EM FAVOR DE DESCENDENTE MENOR. DESNECESSIDADE DA EXISTÊNCIA DE AVERBAÇÃO DA PENHORA OU DA EXECUÇÃO NA MATRÍCULA DO IMÓVEL OU DE PROVA DA MÁ-FÉ. 1. Embargos de terceiro opostos em 19/02/2019, dos quais foi extraído o presente recurso especial interposto em 20/07/2021 e concluso ao gabinete em 01/02/2022. 2. O propósito recursal consiste em definir se a averbação da penhora ou da pendência de ação de execução na matrícula do bem ou a prova da má-fé é requisito imprescindível para a caracterização de fraude à execução na hipótese de transferência de imóvel pelo devedor a seu descendente. 3. A fraude à execução atua no plano da eficácia, de modo que conduz à ineficácia da alienação ou oneração do bem em relação ao exequente (art. 592, V, do CPC/73; art. 792, § 2º, do CPC/2015). 4. As hipóteses em que a alienação ou oneração do bem são consideradas fraude à execução podem ser assim sintetizadas: (i) quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória; (ii) quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução; (iii) quando o bem tiver sido objeto de constrição judicial nos autos do processo no qual foi suscitada a fraude; (iv) quando, no momento da alienação ou oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência (art. 593 do CPC/73 e art. 792 do CPC/2015). 5. Esta Corte tem entendimento sedimentado no sentido de que a inscrição da penhora no registro do bem não constitui elemento integrativo do ato, mas sim requisito de eficácia perante terceiros. Precedentes. Por essa razão, o prévio registro da penhora do bem constrito gera presunção absoluta (juris et de jure) de conhecimento para terceiros e, portanto, de fraude à execução caso o bem seja alienado ou onerado após a averbação (art. 659, § 4º, do CPC/73; art. 844 do CPC/2015). Essa presunção também é aplicável à hipótese na qual o credor providenciou a averbação, à margem do registro, da pendência de ação de execução (art. 615-A, § 3º, do CPC/73; art. 828, § 4º, do CPC/2015). 6. Por outro lado, se o bem se sujeitar a registro e a penhora ou a execução não tiver sido averbada, tal circunstância não obsta, prima facie, o reconhecimento da fraude à execução. Na hipótese, entretanto, caberá ao credor comprovar a má-fé do terceiro; vale dizer, que o adquirente tinha conhecimento acerca da pendência do processo. Essa orientação é consolidada na jurisprudência deste Tribunal Superior e está cristalizada na Súmula 375 do STJ e no julgamento do Tema 243. 7. Entretanto, essa proteção não se justifica quando o devedor procura blindar seu patrimônio dentro da própria família mediante a transferência de bem para seu descendente, sobretudo menor, com objetivo de fraudar execução já em curso. Nessas situações, não há importância em indagar se o descendente conhecia ou não a penhora sobre o imóvel ou se estava ou não de má fé. Isso porque o destaque é a má-fé do devedor que procura blindar seu patrimônio dentro da própria família. 8. Recurso especial conhecido e parcialmente provido. (STJ. T3. REsp n. 1.981.646/SP, Min. Nancy Andrighi, DJe de 5/8/2022)
(5) Os Embargos de Divergência são uma espécie recursal prevista nos arts. 1.043 e 1.044 do CPC, cujo objetivo é uniformizar a jurisprudência interna do STJ ou STF.