Novas regras para firmar acordos de leniência com o setor público são editadas por medida provisória e geram polêmica
Maria Tereza Fonseca Dias
Editada em 18/12/2015, pela Presidente Dilma Rousseff, a MP nº 703 promoveu alterações na Lei Anticorrupção Empresarial (Lei nº 12.846/2013) quanto aos objetivos, resultados e procedimento dos acordos de leniência a serem firmados entre os entes públicos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e pessoas jurídicas (notadamente empresas) responsáveis pela prática de atos e fatos investigados em processo administrativo que sejam lesivos à administração pública nacional ou estrangeira.
As polêmicas em torno da matéria, recentemente veiculadas pela imprensa, estão mais relacionadas com os possíveis usos “políticos” dos acordos de leniência do que propriamente com a sua juridicidade. De um lado estão aqueles que acreditam ter sido a edição da MP uma medida necessária para garantir com que empresas investigadas por atos lesivos a Administração Pública possam, com os acordos de leniência, dar continuidade a contratos públicos, de interesse da coletividade e, ao mesmo tempo, preservar o aspecto econômico de sua atividade. De outro lado estão os que acusam o governo de editar regras para promover acordos de leniência com empresas que praticam atos lesivos ao patrimônio público, razão pela qual deveriam antes ser punidas, do que “beneficiadas” pelos acordos.
Alterações promovidas pela MP 703 na Lei Anticorrupção Empresarial
Importante lembrar que o acordo de leniência alterado no âmbito da MP 703 já era previsto tanto na Lei Anticorrupção Empresarial (arts. 16 e 17), desde sua aprovação, quanto no regulamento da Chefe do Poder Executivo editado para execução da referida lei (Decreto nº 8.420/2015). Além deste tipo de acordo ser amplamente utilizado em outros países, tal como previsto na Diretiva 2014/24 do Parlamento Europeu (referente aos contratos públicos firmados pelos países da Comunidade Econômico Europeia), sob a terminologia “colaboração ativa com as autoridades responsáveis”(1), o próprio direito brasileiro previa outros tipos de ajustes – inclusive a própria leniência - entre o setor público e o setor privado, para conformar determinados agentes ao cumprimento da lei. Citam-se como exemplos, o Termo de Ajustamento de Conduta, previsto no art. 5º, § 6º, da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985) e o acordo de leniência (2) passível de ser firmado com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica previsto na Lei que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529/2011 - art. 86 e 87).
O principal objetivo do acordo de leniência da Lei Anticorrupção Empresarial é fazer com que os agentes econômicos suspendam a prática de atos lesivos a Administração Pública e, ao mesmo tempo, confessem a prática de atos ilícitos e tragam elementos à elucidação do caso, sem prejuízo da continuidade de suas atividades no âmbito da contratação pública. A Lei nº 12.846/2013, inclusive, desde que editada, já havia previsto que o acordo de leniência não exime a pessoa jurídica que firmar o acordo da obrigação de reparar integralmente o dano causado (art. 16, §3º).
As principais alterações introduzidas na Lei Anticorrupção Empresarial pela MP 703, quanto ao acordo de leniência, foram as seguintes:
1) Ampliação dos resultados esperados no acordo de leniência
A lei espera que a nova lei possa alcançar os seguintes resultados:
a) a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber;
b) a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação;
c) a cooperação da pessoa jurídica com as investigações, em face de sua responsabilidade objetiva; e,
d) o comprometimento da pessoa jurídica na implementação ou na melhoria de mecanismos internos de integridade.
Antes da Edição da MP 703, os acordos de leniência eram destinados a alcançar apenas os dois primeiros resultados listados acima.
2) Requisitos a serem preenchidos para que o acordo de leniência possa ser firmado
A MP suprimiu a exigência de que “a pessoa jurídica seja a primeira a manifestar seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito”, bem como a obrigação de “admitir sua participação no ilícito” para que o acordo seja celebrado.
A MP 703 também permitiu, a partir da alteração da redação do art. 17 da Lei Anticorrupção empresarial, que possa ser celebrado acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável por atos e fatos investigados previstos em normas de licitações e contratos administrativos, com vistas à isenção ou à atenuação das sanções restritivas ou impeditivas ao seu direito de licitar e contratar.(3)
Com a redação da citada MP, o acordo poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de propositura do acordo;
b) a pessoa jurídica, em face de sua responsabilidade objetiva, coopere com as investigações e com o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento;
c) a pessoa jurídica se comprometa a implementar ou a melhorar os mecanismos internos de integridade, auditoria, incentivo às denúncias de irregularidades e à aplicação efetiva de código de ética e de conduta.
Assim, ao invés de restringir a utilização do acordo de leniência à primeira pessoa jurídica que manifestar o seu interesse – como está previsto da Lei da Concorrência(4) – a MP passou a aceitar que mais de uma pessoa jurídica envolvida na prática de ato lesivo a Administração Pública proponha acordo de leniência, independente ter sido ou não a primeira a se manifestar. A primeira a se manifestar, entretanto, poderá ser beneficiada até mesmo com a completa remissão de multa que lhe seria aplicada, o que não alcançará as demais, que se manifestarem posteriormente (art. 16, §2º, III, da Lei nº 12.846/2013 após o advento da MP 703).
3) Previsão explícita dos benefícios para as pessoas jurídicas que firmarem acordos de leniência com o setor público
A MP introduziu os principais benefícios que gozarão as pessoas jurídicas que firmarem acordos de leniência, em conformidade com a redação dada ao art. 16, § 2º, incisos I, II e III, a saber:
a) isentará a pessoa jurídica da sanção de “publicação da decisão condenatória” (prevista no inciso II, do caput do art. 6º da Lei nº 12.846/2013), bem como das sanções restritivas ao direito de licitar e contratar;
b) poderá reduzir a multa (5) prevista na própria Lei Anticorrupção empresarial (art. 6º, I) em até dois terços; e,
c) poderá remir completamente a multa, no caso de ter sido a primeira empresa a firmar o acordo.
Nestas duas últimas hipóteses também não será aplicável à pessoa jurídica qualquer outra sanção de natureza pecuniária decorrente das infrações especificadas no acordo de leniência.
O principal aspecto desses benefícios diz respeito ao fato de que, uma vez firmado o acordo de leniência, o cancelamento das sanções restritivas ao direito de licitar e contratar é automático.
4) Competências e atribuições dos órgãos e entidades no tocante ao acordo de leniência
A MP definiu, de maneira mais clara, as competências e atribuições de outros órgãos e entidades, no acordo de leniência.
No âmbito federal, é a Controladoria-Geral da União - CGU o órgão competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal, bem como no caso de atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira (art. 16, § 10).
Os demais entes federativos (Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) deverão editar normas para definir os órgãos competentes em cada esfera, devendo ser, por indicação da própria lei, o seu órgão de controle interno. Caso não haja definição do órgão competente, a MP estabeleceu que “[...] o acordo de leniência somente será celebrado pelo chefe do respectivo Poder em conjunto com o Ministério Público” (art. 16, § 13).
O acordo de leniência celebrado com a participação da Advocacia pública e do Ministério Público impede que os entes celebrantes ajuízem ou prossigam com ações em face das pessoas jurídicas: sejam as ações da própria lei de combate a corrupção (art. 19)(6), ações por improbidade administrativa (Lei nº 8.429/1992) ou ações de natureza civil (art. 16, § 11 e 12 da Lei nº 12.846/2013).
Os Tribunais de contas receberão os acordos de leniência depois de celebrados, sem prejuízo da sua competência descrita no art. 71, II, da Constituição da República (7).
Com exceção da definição da competência da CGU em âmbito federal, todas as demais regras de competências e atribuições em comento foram editadas após a MP 703, ampliando a participação de outros órgãos e entidades públicas, como a Advocacia Geral da União e o Ministério Público, além do controle externo exercido pelos Tribunais de Contas.
5) Incentivos à promoção do acordo de leniência
Para incentivar que as pessoas jurídicas procurem propor acordos de leniência com o setor público, duas medidas importantes foram editadas no âmbito da Lei Anticorrupção Empresarial, nas hipóteses de rejeição de proposta de acordo:
a) a rejeição não importará em reconhecimento da prática do ato ilícito investigado (art. 16, § 7º, da Lei nº 12.846/2013); e,
b) os documentos porventura juntados durante o processo para elaboração do acordo de leniência deverão ser devolvidos à pessoa jurídica, não permanecendo cópias em poder dos órgãos celebrantes.
Por se tratar de Medida Provisória recentemente editada, que requer a apreciação do Congresso Nacional para a continuidade da vigência da Lei Anticorrupção empresarial nos termos propostos pela MP 703, bem como para assegurar a segurança jurídica necessária aos setores público e privado que firmarão acordos de leniência, caberá ao Legislativo, com responsabilidade, e ouvidos os segmentos sociais relevantes na discussão do tema, decidir se o acordo de leniência é medida necessária para garantir com que empresas investigadas por atos lesivos a Administração Pública possam dar continuidade a contratos públicos e, ao mesmo tempo, preservar o aspecto econômico de sua atividade; ou se, ao contrário, tais acordos visam tão somente beneficiar empresas que praticam atos lesivos ao patrimônio público, devendo as mesmas serem punidas e não alcançadas pelo acordo.
Talvez a lição imediata que se pode tirar desta MP, antes mesmo de sua aplicação e transformação em lei, é que não se pode ver o instrumento como “bom” ou “ruim” em si, mas entender que é o uso que se fará dele é que poderá mostrar se foi ou não benéfico a toda sociedade. Além disto, de nada adiantaria a previsão do acordo de leniência no âmbito da Lei Anticorrupção Empresarial sem que os procedimentos para sua aplicação estivessem claramente definidos.
Maria Tereza Fonseca Dias
Consultora em Direito Público do VLF Advogados.
(1) EROPEAN UNION. Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE. Jornal Oficial da União Europeia, de 28/03/2014, p. 65-242. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0024&from=PT> Acesso em: jan. 2016.
(2) No caso desta lei mais recente de defesa da concorrência, as alterações promovidas no âmbito do Programa de Leniência ampliaram as hipóteses de concessão de leniência “[...] aos crimes previstos em outros estatutos criminais, como é o caso das fraudes em licitações e a formação de quadrilha.” (Cf. CARVALHO, Vinicius Marques de; LIMA, Ticiana Nogueira da Cruz. A nova lei de defesa da concorrência brasileira: comentários sob uma perspectiva histórico-institucional. Publicações da Escola da AGU: a Nova Lei do CADE, Brasília n. 19 p. 1-300 julho 2012. p. 32.
(3)Neste caso, também foi previsto pela MP nº 703, (art. 17-A da Lei nº 12.846/2013) que os processos administrativos referentes a licitações e contratos em curso em outros órgãos ou entidades que versem sobre o mesmo objeto do acordo de leniência deverão, com a celebração deste, ser sobrestados e, posteriormente, arquivados, em caso de cumprimento integral do acordo pela pessoa jurídica.
(4) Cf. as experiências sobre acordo de leniência em outras jurisdições sobre concorrência em ARAÚJO, Gilvandro Vasconcelos Coelho de. As composições no CADE como instrumento de efetividade na defesa da concorrência. Publicações da Escola da AGU: a Nova Lei do CADE, Brasília n. 19 p. 1-300 julho 2012. p. 215-219.
(5) A multa foi estipulada no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação.
(6) Ação com vistas à aplicação das seguintes sanções às pessoas jurídicas infratoras: [...] I - perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé; II - suspensão ou interdição parcial de suas atividades; III - dissolução compulsória da pessoa jurídica; IV - proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos.
(7) Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: [...] II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.