Validade da constituição em mora do devedor fiduciário ganha novos contornos a partir de recentes decisões do STJ
Leila Mendes e Lucas Auer
A alienação fiduciária em garantia é hipótese de garantia real em que o devedor (chamado “fiduciante”) atribui ao credor a propriedade temporária de um bem dado em garantia para o pagamento. Dessa forma, o credor detém a propriedade fiduciária sobre o bem até a quitação da obrigação garantida e, uma vez que o negócio jurídico garantido seja adimplido, a propriedade sobre o bem é devolvida ao devedor.
Quando ocorre o inadimplemento da obrigação, no entanto, o credor pode se valer do procedimento de busca e apreensão previsto no Decreto-Lei nº 911/1969 para reaver o bem dado em garantia e solver a dívida, exigindo-se a comprovação da mora para o ajuizamento dessa ação, nos termos do art. 3º do Decreto-Lei nº 911/1969 (1) e da Súmula nº 72 do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) (2).
A redação original do art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911/1969 exigia que a mora fosse comprovada por carta registrada em cartório ou pelo protesto do título, a critério do credor, porém, esse dispositivo de lei foi alterado pela Lei nº 13.043/2014, permitindo-se que a mora seja comprovada por simples carta registrada com aviso de recebimento, sequer havendo exigência de que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário.
A partir disso, instaurou-se controvérsia sobre a interpretação do Decreto-Lei nº 911/1969 diante do avanço das tecnologias de comunicação, que possibilitaria o envio da notificação por e-mail, aplicativos de mensagens ou redes sociais. Questionava-se, nesse sentido, se as novas tecnologias poderiam ser utilizadas pelo credor fiduciário para fins de comprovação da mora para o ajuizamento da ação de busca e apreensão. Recentemente, o STJ deliberou sobre dois importantes pontos relacionados ao tema.
A Terceira Turma do STJ, ao julgar o Recurso Especial nº 2.022.423/RS, decidiu que o envio da notificação por e-mail não cumpre com a finalidade do Decreto-Lei nº 911/1969. Conforme entendimento da Relatora, a Ministra Nancy Andrighi, o envio da notificação por e-mail não permite a comprovação do recebimento, pois, a sua ciência inequívoca demandaria o exame de diversas questões, como a existência do endereço de e-mail do devedor fiduciante, o efetivo uso da ferramenta por ele, a estabilidade e segurança da ferramenta de e-mail, dentre outros fatores. A Ministra entendeu que esse exame implicaria na ampliação da atividade instrutória e poderia demandar até mesmo a realização de prova pericial para apurar o recebimento ou não da notificação pelo devedor, o que instalaria rito incompatível com o Decreto-Lei nº 911/1969.
Além disso, a Relatora concluiu que, na data da mudança legislativa pela Lei nº 13.043/2014, o uso do e-mail já estava amplamente difundido pelo mundo todo, de modo que o legislador poderia ter incorporado o e-mail como meio apto a comprovar a constituição em mora do devedor, mas, escolheu não fazê-lo. O acórdão mencionado já transitou em julgado e, portanto, a Terceira Turma do STJ deve observar esse precedente ou fazer a respectiva diferenciação ou superação do seu entendimento, conforme as técnicas de aplicação de precedentes usualmente adotadas.
Já a Segunda Seção do STJ, por ocasião do recente julgamento do Tema 1.132, aprovou a tese de que “para a comprovação da mora nos contratos garantidos por alienação fiduciária, é suficiente o envio de notificação extrajudicial ao devedor no endereço indicado no instrumento contratual, dispensando-se a prova do recebimento, quer seja pelo próprio destinatário, quer por terceiros”.
O voto condutor, redigido pelo Ministro João Otávio de Noronha, considerou que a formalidade exigida por lei seria restrita à prova do envio da notificação, via postal e com a via de recebimento, para o endereço indicado pelo devedor. De acordo com o Relator, o adquirente, ao celebrar o negócio jurídico, já possui plena ciência das regras e das consequências do não pagamento, não sendo razoável exigir do alienante a perquirição da entrega da notificação ao destinatário.
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Leila Mendes
Advogada da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
Lucas Auer
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) Decreto-Lei nº 911/1969, art. 3º: “O proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada a mora, na forma estabelecida pelo § 2º do art. 2º, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário”.
(2) STJ, Súmula nº 72: “A comprovação da mora é imprescindível à busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente”.