STJ e a jurisprudência de reparação do dano ambiental
Leonardo Alves Corrêa e Géssica Ribeiro
A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 225 § 3º, a obrigação geral de reparação do dano ambiental. A responsabilidade civil ambiental e a obrigação propter rem são institutos jurídicos que viabilizam a reparação do dano ambiental a partir de perspectiva da ordem civil. Entretanto, apesar de terem similaridades, os institutos da responsabilidade ambiental e da obrigação propter rem possuem implicações práticas distintas. Em face de dano ambiental, torna-se imprescindível avaliar as características e limites de cada instituto jurídico no caso concreto. Ao Judiciário não cabe promover “intepretação ambiental criativa”, na medida em que ao mesclar elementos formadores de institutos jurídicos distintos, viola o princípio da separação dos poderes.
Para compreender o cenário de insegurança jurídica é fundamental analisarmos o modo como o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) tem abordado a questão. O tema das obrigações ambientais propter rem é pacificado no STJ. A Súmula 623 do STJ, publicada no DJe de 17 de dezembro de 2018 define que “as obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor”.
Recentemente, em 26 de setembro de 2023, o STJ publicou o acórdão de mérito dos Recursos Especiais números 1.953.359/SP e 1.962.089/MS, com paradigmas da controvérsia repetitiva descrita no Tema 1204. A tese aprovada acrescenta novo trecho:
As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo possível exigi-las, à escolha do credor, do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores, ou de ambos, ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente.
A questão central é que a combinação de elementos caracterizadores dos dois institutos jurídicos pode gerar ampliação ilegítima dos agentes responsáveis pelo dever de reparação do dano ambiental. Os institutos são similares, mas possuem requisitos distintos para sua aplicação. A confusão entre responsabilidade civil ambiental e a obrigação propter rem aumenta a insegurança jurídica e os custos de transação entre os agentes econômicos.
A obrigação propter rem ou “obligatio popter rem” é acessória à relação jurídico-real e obrigação ambulat cum domino, ou seja, acompanha a propriedade na medida em que é transmitida ao novo titular. Assim, a transmissão da propriedade ocasiona a extinção da obrigação do transmitente ao adquirente no ato da aquisição da propriedade, que passa a ser o titular do direito real.
A obrigação propter rem ambiental deriva da função socioambiental da propriedade, isto é, obrigação geral que se fundamenta no dever de garantir a preservação dos recursos naturais disponíveis, nos termos do art. 5º, inc, XXIII (1) c/c art. 186, II da Constituição Federal (2). O dever jurídico compreende tanto a manutenção dos componentes naturais que existem na propriedade, quanto a regeneração e recomposição daqueles afetados.
Todavia, a obrigação propter rem não se confunde com a responsabilidade civil objetiva ambiental. De fato, a responsabilidade civil ambiental requer a existência dos elementos formadores do instituto: a conduta (atividade poluidora de pessoa física ou jurídica, de Direito Público ou Privado), dano ambiental e nexo de causalidade que conecte ambos. Nos termos do §1º do art. 14 da Lei nº 6.938/1981, a Política Nacional de Meio Ambiente, a obrigação de reparar é objetiva e, portanto, independentemente da existência de culpa.
Ainda nesse sentido, a Lei nº 6.938/1981 define o causador do dano ambiental como poluidor, nos termos do artigo 3º, IV. Assim, o poluidor pode ser considerado o agente direto ou indireto que realiza ação ou omissão que resulta em dano ambiental. Nesse sentido, o poluidor direto é aquele que executa a atividade ou que assume o risco decorrente dela e o indireto é definido como o sujeito que contribui, de alguma forma, para a ocorrência do evento poluidor.
O poluidor indireto responde pelos danos ambientais que de alguma forma viabilizou, em solidariedade com o poluidor direto. No entanto, o conceito é indeterminado e traz insegurança jurídica, sendo indispensável identificar, no caso concreto, a contribuição efetiva do poluidor indireto na caracterização do dano ambiental e, consequentemente, a atribuição do dever de reparar ou indenizar.
Com os conceitos definidos, nota-se o real problema da atual intepretação do STJ: a Súmula 623, ao misturar elementos da responsabilidade ambiental e da obrigação propter rem, gera uma extensão indevida do dever de reparar ou indenizar o dano ambiental. Em outras palavras, aquele que foi legítimo proprietário ou exerceu a posse regular do imóvel, ainda que por curto período e que não tenha realizado nenhuma ação que resultou em degradação dos recursos naturais, pode ser obrigado a reparar o dano ambiental.
Imaginemos o seguinte caso: o proprietário A realizou intervenção ilegal em área de preservação permanente e, alguns anos depois, aliena o imóvel para o proprietário B que, por sua vez, desconhece o passivo ambiental. Após seis meses, o proprietário B aliena novamente o imóvel para o proprietário C. De acordo com a interpretação do STJ, o dever de reparação não se limita ao proprietário C, o atual proprietário do imóvel. Seria possível ajuizar ação de reparação ambiental em face do antigo proprietário B, apesar de ele não ser o atual proprietário do imóvel ou da inexistência do nexo de causalidade entre sua ação e o dano ambiental.
O Tema 1.204 do STJ, ainda que com o acréscimo de novo trecho, contribui com ambiente de insegurança e incerteza jurídica. A jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre o tema deve ser urgentemente reavaliada. Ao inserir elementos da responsabilidade civil (como o conceito de poluidor indireto) dentro da lógica da obrigação propter rem, o STJ descaracteriza os elementos formadores de cada instituto. Apesar de sua matriz constitucional, a obrigação de reparação do dano ambiental deve ser pautada nos limites hermenêuticos da legalidade e razoabilidade.
Leonardo Alves Corrêa
Sócio-executivo da área de Direito Ambiental e Negócios Sustentáveis do VLF Advogados
Géssica Ribeiro
Advogada da área de Direito Ambiental e Negócios Sustentáveis do VLF Advogados
(1) Art. 5º, inc. XXIII, CF: “a propriedade atenderá a sua função social”.
(2) Art. 186, inc. II, CF: “a função social é cumprida quando a propriedade rural atende simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: [...] II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente”.