A atribuição sancionatória no setor de energia compete à ANEEL: CCEE não pode aplicar multas aos agentes do mercado
Walter Neto
A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (“CCEE”) é pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (“ANEEL”) com a finalidade de viabilizar a comercialização de energia elétrica no Brasil, na forma do artigo 4º da Lei nº 10.848/2004:
Art. 4º, da Lei nº 10.848/2004: Fica autorizada a criação da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica - CCEE, pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, sob autorização do Poder Concedente e regulação e fiscalização pela Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, com a finalidade de viabilizar a comercialização de energia elétrica de que trata esta Lei.
No exercício de suas atividades, compete à CCEE regulamentar a comercialização de energia, criando ambiente para que seus agentes possam realizar as operações em todo o Sistema Interligado Nacional (“SIN”), sendo suas atribuições: i) manter o registro dos montantes de potência e energia objeto dos contratos celebrados; ii) promover a medição e registro de dados das operações de compra e venda; iii) apurar o preço de liquidação de diferenças do mercado de curto prazo; iv) contabilizar o montante de energia comercializado; v) apurar o descumprimento de limites de contratações e de eventuais infrações; vi) apurar e promover ações para realização dos depósitos de custódia e execução de garantias financeiras relativas às liquidações do mercado de curto prazo.
Embora não haja previsão legal expressa que autorize a aplicação de multas pela CCEE aos agentes que atuam no mercado de energia, a prática mostrou que a CCEE se considerou autorizada utilizar o “poder de polícia” sob a justificativa de que isso teria sido delegado pela ANEEL no artigo 2º, inciso VII do Decreto nº 5.177/2004:
A CCEE terá, dentre outras, as seguintes atribuições: VII: Apurar o descumprimento de limites de contratação de energia elétrica e outras infrações e, quando for o caso, por delegação da ANEEL, nos termos da convenção de comercialização, aplicar as respectivas penalidades.
Essa atuação sancionatória da CCEE, contudo, recebe muitas críticas dos agentes integrantes do mercado de energia, tanto porque a CCEE é pessoa jurídica de direito privado e não integra a Administração Pública, como porque eventual delegação do poder de polícia só poderia decorrer de lei em sentido estrito (e não por Decreto).
Recentemente, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) julgou o Recurso Especial nº 1.950.332/RJ (2021/0228042-0) (1) que envolvia exatamente a discussão a respeito da possibilidade (ou não) do exercício do poder de polícia administrativa pela CCEE.
No caso analisado pelo STJ, a parte recorrente (uma usina termoelétrica) defendeu que o exercício das atividades de polícia administrativa é indelegável a entidades privadas, especialmente quanto à possibilidade de tributar ou punir num contexto de atividades regulamentadas. Essa tese encontra amparo em entendimento do próprio STJ (REsp 817.534/MG – 2) e do Supremo Tribunal Federal (“STF”) (ADI 1.717 – 3).
É verdade que, no julgamento do Recurso Extraordinário Representativo de Controvérsia nº 633782/MG (4), o STF reconheceu a constitucionalidade da delegação do poder de polícia, porém, desde que feita por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público e que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado em regime não concorrencial.
De acordo com os Ministros da Primeira Turma do STJ, esse não é o caso da CCEE, pois não há lei autorizando expressamente que a CCEE aplique multas aos agentes integrantes do mercado de energia, até porque essa atribuição é da ANEEL e não há lei instituindo a delegação dessa competência, apenas o Decreto nº 5.177/2004.
Como fundamento, os Ministros ainda destacaram que a CCEE não integra a Administração Pública, seus empregados não gozam de estabilidade e que ela ainda é composta por agentes vinculados aos serviços e instalações de energia elétrica, ou seja, por pessoas jurídicas com fins lucrativos.
Com isso, reiterando o entendimento pela indelegabilidade da atribuição do poder de polícia às pessoas jurídicas de direito privado que não integram a Administração Pública, firmou-se o entendimento de que a CCEE não pode aplicar multas aos agentes associados, o que, no caso mencionado, fundamentou a improcedência do pedido formulado pela CCEE na ação de cobrança distribuída contra a usina termoelétrica.
Mais informações podem ser obtidas com a equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados.
Walter Neto
Advogado da Equipe de Contencioso Cível do VLF Advogados
(1) REsp 1.950.332/RJ, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, por unanimidade, julgamento em 26/09/2023, Dje 02/10/2023.
(2) REsp 817.534/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgamento em 10/11/2009, Dje 10/12/2009.
(3) Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.717, Rel. Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgamento em 07/11/2002.
(4) Recurso Extraordinário Representativo de Controvérsia nº 633.782/MG. Rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 16/10/2020, Dje 23/10/2020.