Boas práticas de compliance e a responsabilidade civil contratual
Fernanda Galvão e Leila Bitencourt
Diariamente, os contratos movem a atividade empresarial por meio de uma série de cláusulas. As previsões contratuais que tratam do preço, objeto e prazo costumam ganhar mais atenção nas negociações técnicas e comerciais. Não raro, cláusulas de compliance são inseridas nos contratos, seja em razão de determinações de áreas internas como de compliance, sustentabilidade, seja porque assim foram colocadas nas minutas-padrão. Muitas vezes, não são “lembradas” durante a execução dos contratos até que surja alguma discussão sobre o seu descumprimento.
É sobre esse aspecto que este texto pretende avaliar a importância de se compreender o que são as boas práticas no contexto de compliance e como elas se relacionam com a responsabilidade civil das partes que firmaram um contrato.
1) Compliance e boas práticas
O compliance é relacionado aos temas de integridade, que significa “caráter, qualidade de uma pessoa íntegra, honesta, incorruptível, cujos atos e atitudes são irrepreensíveis; honestidade, retidão” (1). O termo em inglês “To comply with”, em síntese, significa agir de acordo, estar em conformidade com regras, códigos de conduta, políticas, procedimentos e legislações (2) (3).
As questões de integridade começaram a ser difundidas no Brasil com mais frequência a partir de 2014 quando houve o início da vigência da Lei Anticorrupção (4). Essa norma tem por objetivo principal proteger o patrimônio da Administração Pública nacional ou estrangeira contra atos lesivos que vão desde a oferta de qualquer tipo de vantagens indevidas a agentes públicos, até a prática de atos lesivos relacionados aos processos licitatórios, como fraudes por meio de combinações ilícitas entre concorrentes, passando por manipulações para fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a Administração Pública e expedientes para dificultar investigações ou fiscalizações pelas autoridades.
Apesar de a criação de políticas de compliance não ser obrigatória na Lei Anticorrupção, a existência de programa de integridade e controles internos podem ser levados em consideração para atenuar as penalidades (5) aplicadas em processos administrativos de responsabilização, conhecidos como PAR. Por ocasião da instauração desses processos, podem ser aplicadas multas que vão de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos (6).
Além da responsabilização administrativa, pode haver a responsabilização judicial, com possibilidade de aplicação de medidas mais severas, como a devolução dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito diretamente ou indiretamente obtidos da infração e a suspensão ou interdição parcial das atividades da pessoa jurídica infratora (7). Há ainda possíveis impactos contratuais que serão tratados a seguir, em tópico específico.
Nesse cenário, as boas práticas de compliance desempenham papel crucial para que se possa efetivar medidas que garantam o cumprimento não só das legislações, mas também das políticas de integridade existentes dentro de uma organização. Isso porque elas promovem “ações, procedimentos, processos ou métodos que foram estabelecidos como efetivos e que são amplamente aceitos como padrões para alcançar um objetivo específico”, especialmente em relação “à mitigação/afastamento da responsabilidade” (8).
Compreendida a noção de que as boas práticas concretizam e implementam as determinações de compliance, o próximo tópico delimita os pontos centrais sobre a responsabilidade contratual para, posteriormente, refletir sobre a relação entre contratos, compliance e boas práticas.
2) Responsabilidade contratual
A responsabilidade contratual está inserida no tema da responsabilidade civil, e esta última, por sua vez, é caracterizada pelo descumprimento de dever jurídico que, ao causar danos, gera o dever de indenizar (9).
A responsabilidade civil pode ser dividida em contratual e a extracontratual. A princípio, a diferença decorre de qual tipo de dever descumprido causou os danos que devem ser indenizados pelo infrator. A responsabilidade contratual trata dos danos causados por descumprimento de obrigação acordada pelas partes. De outra forma, a extracontratual disciplina situações em que o dever jurídico imposto pela lei em sentido amplo foi violado. Assim, é possível entender a responsabilidade contratual como aquela que, em regra, há relação preexistente entre as partes envolvidas na situação em que danos foram causados (10) (11).
Apesar de a diferença entre essas duas responsabilidades não ser pacífica entre juristas, é importante analisá-las de forma separada, pois a responsabilização civil decorrente de descumprimentos de obrigações tem impactos na definição do ônus da prova (12).
Isso porque, na responsabilidade extracontratual, aquele que sofreu o dano deve, além de prová-lo, apresentar evidência de culpa nos casos em que ela é requisito para a responsabilização. Por outro lado, no âmbito contratual basta a comprovação do descumprimento do contrato para que se presuma a culpa da parte devedora que gerou danos em razão do descumprimento da obrigação (13). Assim, uma das medidas que podem ser tomadas pela suposta parte infratora para afastar essa responsabilização é provar que não teve culpa no inadimplemento (14) (15) (16).
Por fim, caso haja o inadimplemento e o contrato tenha previsão de aplicação de multa, também chamada de cláusula penal,
para que o devedor inadimplente esteja obrigado a pagar a multa, não é preciso haver a comprovação dos danos gerados, nos exatos termos do que prevê o caput do art. 416 do Código Civil. Isto é, o surgimento da obrigação de o devedor pagar o valor previsto na cláusula penal decorre simplesmente da comprovação de que houve descumprimento obrigacional pelo devedor. Isso porque a presunção é a de que o dano é sempre existente nessa hipótese, ou seja, não admite prova em contrário (17).
Se a cláusula penal previr que
além da multa caberia também indenização por perdas e danos, em relação a esse valor suplementar deveria haver, necessariamente, a comprovação dos prejuízos causados. Esse tipo de multa é comumente denominada nos contratos como multa não compensatória. Isso porque, nesse caso, a cláusula penal é uma prefixação mínima dos danos a serem ressarcidos, nos termos do parágrafo único do art. 416 do Código Civil. Porém, se a cláusula não previr essa possibilidade, o pagamento da multa corresponderá ao pagamento de todos os prejuízos gerados pelo inadimplemento, ainda que a apuração de danos sofridos pela outra parte seja maior do que o valor da penalidade (17).
Portanto, considerando o contexto de contratos empresariais, pode-se afirmar que a responsabilidade civil contratual e a obrigação de pagar multa por descumprimento do contrato podem ser afastadas pelo devedor caso ele comprove não ter tido culpa. É exatamente nesse ponto que as boas práticas em compliance interagem com questões de responsabilização civil, conforme será abordado a seguir.
3) Principais reflexões sobre a interação entre as boas práticas de compliance e a responsabilidade contratual
Como visto, as boas práticas contribuem para a observância de determinações de compliance, e, no contexto contratual, é comum colocá-las nas cláusulas “anticorrupção”, “compliance” e ‘ESG”.
Assim, considerando que o descumprimento desse tipo de cláusula está inserido nos limites da responsabilidade contratual, e que esta pode ser afastada se houver comprovação de que não houve culpa, é indispensável estabelecer boas práticas por meio de políticas e procedimento interno (ou regulamento) que as tratem de forma detalhada.
São exemplos de boas práticas (normalmente decorrentes de políticas e procedimentos internos): realização de treinamentos junto aos fornecedores sobre as políticas de intolerância ao assédio moral e sexual e outros tipos de violência, criação de passo a passo para interações que uma das partes contratantes tenham com agentes públicos, campanhas de sensibilização e esclarecimento de termos ligados a medidas anticorrupção, due diligence para obtenção de confirmações necessárias sobre integridade dos fornecedores para evitar a violação às regras de compliance.
Entretanto, não basta apenas a adoção de boas práticas. Tão importante quanto cumprir as regras e procedimentos, controles internos, também é indispensável ter meios de comprovar, com evidências materiais, que as regras foram de fato divulgadas e implementadas.
Além disso, essas evidências servirão para sustentar um dos pilares do compliance que é auditoria e monitoramento, em que se mede a efetividade da implementação de programa de integridade, aferindo se está ou não sendo cumprida na prática e quais controles internos podem ser aperfeiçoados para deixar o procedimento mais eficaz.
Essas evidências tão caras ao compliance, também terão muita valia para eventual apuração da responsabilidade civil contratual, especialmente em discussões relativas ao descumprimento da cláusula de compliance, que pode resultar, também, no pagamento de multa e pedido de encerramento do contrato, previsão recorrente caso ocorra algum descumprimento do tema.
4) Breves reflexões finais
É comum que os contratos tenham cláusulas de compliance para obrigar as partes a agirem conforme princípios éticos e anticorrupção. Porém, apenas a previsão dessas cláusulas nos contratos, desacompanhadas de medidas efetivas para implementar a cultura da integridade por meio de programa de compliance junto às partes contratantes, não será eficaz para afastar a culpa presumida do devedor que descumpre obrigação do contrato, nos termos da responsabilidade civil contratual.
Os programas de integridade, para que sejam efetivos, devem ser construídos “sob medida”, isto é, conforme os riscos a que as organizações estão sujeitas, as legislações, as atividades praticadas e devem ser implementados de forma concreta, utilizando-se das boas práticas que consigam bem servir ao que se prestam: prevenir, detectar e remediar condutas antiéticas, ilegais e em desconformidade com as regras e valores das organizações.
Conte com a equipe de compliance do VLF Advogados para construir o seu programa de integridade sob medida ou aperfeiçoar o seu programa já existente.
Fernanda Galvão
Sócia-executiva e Coordenadora da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
Leila Bitencourt
Advogada da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
(1) Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, 1ª Edição.
(2) PEREIRA, Camila Attilio et al. Identificação do programa compliance nas empresas de médio porte listadas no ranking da great place to work. Brazilian Journal of Development, v. 5, n. 12, p. 32877-32895, 2019, p. 32879.
(3) O VLF Advogados tratou anteriormente sobre esse tema no Informativo VLF – 105/2023, de 28 de junho de 2023. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=2282. Acesso em: 24 out. 2023.
(4) Mesmo antes da vigência da Lei anticorrupção, já existia um microssistema de leis de combate a corrupção, para citar algumas: Lei Complementar nº 64/1990 (sobre inelegibilidade de agentes políticos), Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal); Decreto nº 4.081/2002 (Código de Conduta Ética dos Agentes Públicos em Exercício na Presidência e Vice-Presidência da República).
(5) Conforme artigo 7º, VIII da Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013.
(6) Conforme artigo 6º da Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013.
(7) Conforme artigos 18 e 19 da Lei Anticorrupção – Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013.
(8) Trecho retirado do texto publicado em maio de 2023, na coluna Migalhas de Responsabilidade Civil, intitulado “O consentimento e a premência de renovação da cultura jurídica sobre a responsabilidade civil no âmbito do atendimento médico”, com autoria de Arnaud Marie Pie Belloir, Roberto Henrique Pôrto Nogueira, Leila Bitencourt Reis da Silva e Fernanda Galvão. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/386056/consentimento-e-a-premencia-de-renovacao-da-cultura-juridica. Acesso em: 24 out. 2023.
(9) CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2014, p. 14.
(10) CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2014, p. 30-32.
(11) Conforme pontuado no Informativo VLF – 87/2021, de 29 de dezembro de 2021, a situação a seguir é um exemplo de responsabilidade extracontratual: “alguém alcoolizado dirigindo perigosamente um veículo atropela uma pessoa e fica obrigado a reparar todos os danos e prejuízos sofridos pela vítima”. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=988. Acesso em: 24 out. 2023.
(12) ARAÚJO, Vaneska Donato de; HIRONAKA, Gisele M. F. N. Responsabilidade civil. São Paulo: RT, v. 5, 2008, p. 205-209.
(13) DE ALMEIDA BACARIM, Maria Cristina. Responsabilidade civil contratual e extracontratual. A culpa e a responsabilidade civil contratual. Responsabilidade Civil, p. 89. Disponível em: https://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Escola_Superior/Biblioteca/Biblioteca_Virtual/Livros_Digitais/EPM%203255_Responsabilidade%20civil_%202015.pdf#page=83. Acesso em: 24 out. 2023.
(14) Em regra, a responsabilidade contratual é culposa, isto é, tem base na culpa em sentido amplo – dolo ou culpa em sentido estrito (imprudência, imperícia e negligência). Porém, excepcionalmente, ela pode ocorrer independentemente de culpa, conforme determina o artigo 392 do Código Civil. Esse artigo tem, ainda, previsões sobre contratos gratuitos. No entanto, este texto tem como enfoque os contratos onerosos em que há responsabilidade contratual por culpa em sentido amplo, algo mais corriqueiro nos contratos empresariais. Em razão disso, esses outros cenários não foram considerados.
(15) TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; DA CRUZ GUEDES, Gisela Sampaio. Fundamentos do Direito Civil: Responsabilidade civil. Editora Forense, 2021, p. 55-56.
(16) A questão do ônus da prova interage com as definições de obrigação de meio e de fim – vide TUNC, André. A distinção entre obrigações de resultado e obrigações de diligência. Revista dos Tribunais, v. 778, p. 755-764, 2000, p. 755-758. Porém, tendo em vista que este texto não se propõe avaliar obrigações específicas relacionadas a compliance, mas, sim, tratar do tema de forma geral, a avaliação do impacto desse fator não foi abordada nas reflexões aqui apresentadas.
Em outra oportunidade, sobre a responsabilidade civil médica, essa avaliação foi desenvolvida e poderá ser vista em artigo com autoria de Arnaud Marie Pie Belloir, Roberto Henrique Pôrto Nogueira, Leila Bitencourt Reis da Silva e Fernanda Galvão, que integrará o 2º volume da obra Temas Contemporâneos de Responsabilidade Civil: teoria e prática, conforme noticiado em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/386056/consentimento-e-a-premencia-de-renovacao-da-cultura-juridica. Acesso em: 24 out. 2023.
(17) No Informativo VLF – 87/2021, de 29 de dezembro de 2021, o VLF Advogados tratou sobre esse tema. Disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=988. Acesso em: 24 out. 2023.