Nova Lei Orgânica Nacional da Polícia Militar e a fiscalização ambiental: considerações iniciais
Leonardo Corrêa e Géssica Ribeiro
A Lei nº 6.938/1981 instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente (“PNMA”) e estabeleceu estrutura própria de órgãos e entidades nos três níveis da federação. Essa estrutura administrativa foi concebida como racionalização da atuação estatal na elaboração e concretização da política ambiental.
Neste sentido, o artigo 6º da PNMA estabelece expressamente os órgãos e entidades que integram o Sistema Nacional de Meio Ambiente (“SISNAMA”), a saber: o órgão superior com função de assessoramento do Presidente da República, o órgão consultivo e deliberativo, denominado Conselho Nacional de Meio Ambiente (“CONAMA”); os órgãos responsáveis pela execução da política ambiental, ou seja, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (“IBAMA”) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (“ICMBio”). Além do plano federal, a Lei nº 6.938/1981 estabelece ainda os órgãos ou entidades ambientais no âmbito municipal ou os órgãos ou entidades seccionais no âmbito estadual. Em Minas Gerais é formado pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (“Semad”), pelos conselhos estaduais de Política Ambiental (“Copam”) e de Recursos Hídricos (“CERH”) e pelos órgãos vinculados: Fundação Estadual do Meio Ambiente (“Feam”), Instituto Estadual de Florestas (“IEF”) e Instituto Mineiro de Gestão das Águas (“Igam”).
O fato é que a Lei nº 6.938/1981, em sua redação original e nas modificações futuras, nunca previu expressamente as forças de segurança como órgãos integrantes do SISNAMA. Apesar da lacuna legislativa, diversos estados da Federação adotavam a prática de delegar as atividades fiscalizatórias aos membros da Polícia Militar por meio da celebração de convênios administrativos. A atuação de membros da Polícia Militar nas atividades de fiscalização e na lavratura de autos de infração sempre foi questionada, sendo, inclusive, objeto do ajuizamento de diversas ações anulatórias no Poder Judiciário.
Recentemente, uma inovação legislativa resultou em importante mudança na estrutura administrativa do SISNAMA. A Lei Orgânica Nacional dos Policiais Militares e do Corpo de Bombeiros Militares dos Estados, a Lei nº 14.751/2023, publicada em 12 de dezembro, incluiu as instituições militares no SISNAMA.
Além disso a nova lei também permitiu, nos termos do artigo 5º, VII, que as polícias militares dos estados, do Distrito Federal e dos territórios exerçam a polícia de preservação da ordem pública e a polícia ostensiva, com vistas à proteção ambiental por meio da lavratura de infração ambiental e aplicação de sanções e penalidades administrativas. Ademais, a nova lei define que as polícias militares dos estados, do Distrito Federal e dos territórios, nos termos de suas atribuições constitucionais e legais, respeitado o pacto federativo, possam exercer, por meio de delegação ou de convênio, outras atribuições na prevenção e na repressão a atividades lesivas ao meio ambiente.
Assim, apesar de a Lei nº 14.751/2023 não alterar expressamente o artigo 6º da Lei nº 6.938/1981, parece claro não existir mais a discussão sobre a integração dos policiais militares ao SISNAMA, pois a partir da publicação da nova lei, os agentes passam a ter competência originária, ex legis, para a atuação como agentes executores da política estadual de meio ambiente.
Em Minas Gerais, a atuação da Política Militar como órgão de execução da política ambiental já estava consolidada há alguns anos. O artigo 16-B, § 1º, da Lei Estadual nº 7.772/1980 permite que a Semad, a Feam, o IEF e o Igam deleguem à Polícia Militar de Minas Gerais (“PMMG”) as atividades de fiscalização em matéria ambiental, exceto a aplicação de pena de multa simples ou diária em valor superior a R$100.000,00 (cem mil reais), a suspensão ou redução de atividades e o embargo de obra ou atividade, sem a devida motivação, elaborada por técnico habilitado, salvo em assuntos de caça, pesca e desmatamento.
Trata-se do Convênio nº 1371.01.04.01.17, ratificado em 5 de junho de 2017 e ainda em vigor. O objetivo do referido instrumento administrativo é a delegação de competência à PMMG, especialmente quanto ao exercício do poder de polícia administrativa, com ênfase nos atos de impulso administrativo, de caráter procedimental e sem caráter decisório. Nos termos do convênio, a Polícia Militar de Meio Ambiente possui atribuição para apoiar a Semad e suas entidades vinculadas em atendimentos às denúncias ambientais, fiscalização de atividades licenciadas, atender a acidentes e emergências ambientais após treinamento e capacitação, atuar em articulação com a Semad em campanhas de fiscalização preventiva e de educação ambiental, dentre outros. Todavia, de acordo com o Convênio, a PMMG não detém competência administrativa para decidir sobre os processos administrativos.
Além disso, o artigo 49 do Decreto Estadual nº 47.383/2018, que estabelece normas para licenciamento ambiental, tipifica e classifica infrações às normas de proteção ao meio ambiente e aos recursos hídricos e estabelece procedimentos administrativos de fiscalização e aplicação das penalidades, prevê a possibilidade de delegação, mediante convênio, à PMMG e ao Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Minas Gerais (“CBMMG”), com as devidas ressalvas estabelecidas no próprio decreto. Entretanto, o artigo 44 da Lei Estadual nº 14.182/2002 estabelece que não podem ser objeto de delegação: a edição de ato de caráter normativo, a decisão de recurso e a matéria de competência exclusiva da autoridade delegante.
É possível afirmar, assim, que a nova lei inova ao menos em dois importantes pontos: a) elimina o questionamento sobre o pertencimento dos membros da força de segurança como parte integrante do SISNAMA; b) regulamenta a possibilidade de celebração de convênio entre órgãos do SISNAMA e membros da força de segurança como norma de natureza geral, aplicáveis aos estados da Federação.
Entretanto, a discussão sobre a atuação dos policiais militares como agentes de fiscalização ambiental permanecerá tormentosa em razão de dois aspectos principais.
Em primeiro lugar, os membros da força de segurança, embora sejam agentes do SISNAMA, não mantêm vínculo hierárquico com os Secretários de Estado de Meio Ambiente. A questão central aqui é que não há garantia de que os policiais ambientais estejam aderindo às diretrizes e metas da política de fiscalização ambiental estabelecida pelo órgão competente. A fiscalização não se resume apenas à execução de medidas repressivas. As ações de fiscalização são norteadas por orientação essencialmente política.
Em segundo, a integração formal dos membros das forças de segurança como agentes do SISNAMA resultará em provável aumento das ações fiscalizadoras do estado e, consequentemente, maior volume de autos de infração ambiental. Ocorre que os membros das forças de segurança possuem conhecimentos técnicos em disciplinas e saberes específicos da atuação militar. O conhecimento técnico necessário para lavratura de autos de infração ambiental (aspectos biológicos, físicos, químicos da relação entre homem e a natureza) não faz parte da formação dos militares. Assim, o aumento da lavratura dos autos de infração por agentes que não possuem, necessariamente, o conhecimento técnico especializado deverá resultar em crescimento de outros vícios do ato administrativo, como ilegitimidade da parte autuada, a ausência de formalidade exigida na legislação para que o ato produza seus efeitos, mácula na finalidade em atender ao interesse público, a não descrição de subsídios fáticos mínimos ou circunstâncias que caracterizem as infrações ambientais e ofensas aos princípios da ampla defesa e contraditório.
Sobre este ponto, em análise de decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, verifica-se que a ausência de conhecimento técnico específico em matéria ambiental da PMMG vem sendo objeto de inúmeros questionamentos levados ao judiciário, em que se defende que a PMMG não pode suspender ou reduzir atividades de uma empresa sem laudo de profissional habilitado, em respeito ao princípio da preservação econômica da empresa e sua razão social.
Leonardo Corrêa
Sócio-executivo da área de Direito Ambiental e Negócios Sustentáveis do VLF Advogados
Géssica Ribeiro
Advogada da área de Direito Ambiental e Negócios Sustentáveis do VLF Advogados