A possibilidade de retratação da desistência de denunciação à lide
Júlia Faria Vasques
O instituto da denunciação da lide, previsto nos artigos 125 a 129 do Código de Processo Civil, pode ser sintetizado como ação de regresso que tramita em conjunto com a ação principal, a qual é cabível em hipóteses de garantia da evicção ou de direito regressivo de indenização. Nesse contexto, Arruda Alvim assim esclarece (1):
o instituto da denunciação da lide é a forma reconhecida pela lei como idônea para trazer terceiro ao processo (litisdenunciado), a pedido da parte, autor e/ou réu, visando a eliminar eventuais ulteriores ações regressivas, nas quais o terceiro figuraria, então, como réu.
No mesmo sentido, Humberto Theodoro Junior, elucida (2):
a denunciação da lide presta se à dupla função de, cumulativamente, (a) notificar a existência do litígio a terceiro; e (b) propor antecipadamente a ação de regresso contra quem deva reparar os prejuízos do denunciante, na eventualidade de sair vencido na ação originária.
(...)
A denunciação da lide consiste em chamar o terceiro (denunciado), que mantém um vínculo de direito com a parte (denunciante), para vir responder pela garantia do negócio jurídico, caso o denunciante saia vencido no processo.
A denunciação da lide, portanto, objetiva a efetividade da economia processual e da celeridade, princípios esculpidos no art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal (3):
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Em julgamento recente do Recurso Especial nº 2.081.589, em que se discutia a possibilidade de o denunciante retratar da desistência da denunciação da lide, a Ministra Relatora Nancy Andrighi esclareceu que “a denunciação da lide constitui verdadeira demanda incidente, embora eventual e antecipada” (4). Nos termos do voto da Relatora:
É antecipada, porque o denunciante se antecipa ao prejuízo e instaura a lide secundária, e eventual, tendo em vista o caráter de prejudicialidade da ação principal sobre a denunciação da lide. Se o denunciante for vitorioso na ação principal, a denunciação da lide ficará prejudicada; por outro lado, sendo o denunciante vencido na demanda principal, o juiz passará ao julgamento da denunciação da lide, a qual poderá ser julgada procedente ou improcedente (art. 129 do CPC/2015).
Justamente em razão disso, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) reconheceu que a denunciação da lide possui natureza de ação e, consequentemente, está sujeita à aplicação do artigo 200, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 2015, o qual determina que “desistência da ação só produzirá efeitos após homologação judicial” (5).
No caso em tela, a Recorrente, em sede de Contestação, requereu a denunciação da lide de terceiro, mas, antes mesmo de sua citação, manifestou a desistência do referido ato. Entretanto, no mesmo dia, retratou-se da desistência.
Citada, a denunciada suscitou preliminarmente que haveria operado sobre a denunciação o instituto da preclusão devido ao pedido de desistência. A preliminar arguida foi acolhida em ambas as instâncias ordinárias sob o fundamento de que, em razão do previsto no artigo 158 do Código de Processo Civil de 73 (6), vigente à época da prática do ato, o pleito teria produzido efeitos imediatos, sendo, pois, irretratável.
No entanto, o col. STJ decidiu de forma diversa. A despeito de reconhecer que a retratação encontra forte obstáculo em razão da preclusão consumativa (7), a desistência da ação consiste em exceção a esta regra geral. Logo, uma vez que a denunciação da lide é, em suma, ação dentro de outra ação, ela está sujeita ao parágrafo único do artigo 200, sendo imprescindível a homologação de sua desistência para que efetivamente surta seus efeitos.
Conclui-se, portanto, que, em razão da sua natureza e da relativa autonomia que lhe é concedida, a denunciação da lide se enquadra em exceção ao princípio da irretratabilidade, estando sujeita à homologação da desistência para que produza efeitos. Desta forma, segundo entendimento recente do STJ, deve ser admitida a retratação da desistência a denunciação da lide.
Júlia Faria Vasques
Advogada da Equipe de Contencioso Cível Estratégico do VLF Advogados
(1) ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2003. p. 175. v. 2.
(2) THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Volume I. 59. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 402.
(3) BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1998. 5 out. 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 19 dez. 2023.
(4) BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 19 dez. 2022.
(5) BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n° 2.081.589/MA, da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 3/10/2023, DJe de 9/10/2023. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202302140661&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea. Acesso em: 19 dez. 2022.
(6) “Art. 158. Os atos das partes, consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem imediatamente a constituição, a modificação ou a extinção de direitos processuais.”
(7) “Uma vez praticado o ato, consome-se a possibilidade de fazê-lo, operando-se a preclusão consumativa.” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 248)