O que é meu, livro de José Henrique Bortoluci, e AmarElo, de Emicida
Rafhael Frattari e Katryn Rocha
O que é meu, livro de José Henrique Bortoluci
Livro de estreia do sociólogo José Henrique Bortoloci, a obra pode ser considerada como uma espécie de memórias do autor, aos moldes dos escritos da Anne Ernaux, francesa que anda na moda nos meios literários. Pela obra, percebemos o que tirou o autor da condição de pobreza em que a sua família estava inserida: os estudos. Mas a personagem principal do livro é o pai do autor e as suas andanças pelo país.
O livro reconta as memórias de um caminhoneiro desde a sua infância pobre no interior de São Paulo, até as décadas de 70, 80 e 90. Passam pela obra a própria transformação do país, com destaque para as novas fronteiras do centro-oeste e da Amazônia, com a desorganização social da exploração dos garimpos e outras atividades semilegais, além da despreocupação com a cultura indígena. Como pano de fundo pessoal, a obra aborda a luta das famílias pobres para se estabelecerem como classe média baixa e a insegurança econômica do período, bem como também o capital cultural envolvido nestas transformações. Também as experiências políticas da época são narradas pelo autor, que traz um relato muito real da placidez com que o autoritarismo do regime militar fora recebido por grande parte da população brasileira.
Enfim, a obra é uma aula sobre a história e a geografia do Brasil, mereceria ser lida em todas as escolas do país, embora não caia na armadilha de uma militância superficial, o que é louvável, dada a pequena extensão do livro. Indico demais, pois é uma excelente leitura.
Rafhael Frattari
Sócio-fundador responsável pela Área Tributária do VLF Advogados
AmarElo, de Emicida
Em outubro de 2019, Leandro Roque de Oliveira, o rapper brasileiro Emicida, publicou AmarElo, seu terceiro álbum de estúdio. Composto por 11 faixas e com título inspirado em um poema de Paulo Leminski (“amar é um elo / entre o azul / e o amarelo”), o álbum solar busca construir pontes falando com maturidade sobre nossas fraquezas, certezas e lutas do dia a dia.
O artista propõe uma linguagem ainda focada no rap, mas que foge dos estereótipos do gênero, reunindo heranças, referências de várias épocas e estilos e particularidades encontradas na magnitude da música brasileira, em uma mistura apelidada de neo-samba, e aplicar a ela olhares e aprendizados que acumulou desde o lançamento de sua primeira mixtape.
O filme invisível
Como forma de expansão transmidiática do disco lançado em 2019, a ideia se desdobrou em diversos formatos, e, além dos conteúdos de divulgação, videoclipes e turnê, em março de 2020 foi lançado o podcast AmarElo – O filme invisível, que, narrado pelo próprio Emicida, aprofunda nas referências sonoras, visuais, sensoriais e espirituais para o projeto, e incursiona em uma nova forma de perceber o rap e a própria existência.
Prisma
O segundo podcast, AmarElo – Prisma, lançado pouco depois do primeiro, funciona como um modelo de conversas focadas em quatro pilares, que também permeiam todo o projeto: paz, clareza, compaixão e coragem. O programa conta com convidados diversos que participam de debates sobre a importância do autocuidado físico e mental, fundamentais para que sejam feitas boas escolhas em prol do individual e do coletivo.
É tudo para ontem
Em dezembro de 2020, foi lançado diretamente na plataforma de streaming Netflix AmareElo – É tudo pra ontem, documentário dividido em três atos: plantar, regar e colher, que resgatou cenas de bastidores e a apresentação do rapper no lançamento do álbum no Theatro Municipal de São Paulo, lugar que representou e representa um espaço de poder e influência da elite branca paulistana.
A decisão de se apresentar naquele espaço não se tratou simplesmente de “poder” fazer, mas do poder simbólico que esse ato tem. Porque foi ali, nas escadarias daquele mesmo teatro, do lado de fora, não de dentro, que há 45 anos se reuniram mais 2000 pretos que mudaram para sempre a história política da comunidade negra no Brasil. É possível dizer que seria muito difícil existir o Emicida dentro do Theatro se não fossem as lutas que se iniciaram fora dele com o Movimento Negro Unificado. Com imagens do início da carreira do artista nas rinhas de MCs, arquivos de momentos históricos do país, o documentário é uma verdadeira aula de história sobre a cultura negra brasileira e a luta antirracista no país.
Os destaques do filme, apesar dos importantes nomes da cultura brasileira como Fernanda Montenegro, Zeca Pagodinho, Pabllo Vittar, são as personalidades negras. Muitas delas, que marcaram época, são desconhecidas dos jovens que acompanham a carreira de Emicida. Leci Brandão, Tebas, Lélia Gonzalez, Ruth de Souza, Abdias do Nascimento, Marielle Franco ilustram a luta do movimento negro no Brasil, relembrando sempre o valor do legado daqueles que vieram antes, que garantem a continuidade do movimento no futuro.
“A música é só uma semente”
A visão do Emicida de AmarElo como um elo reforça a ideia de que toda a obra é sobre o amor. Ao objetivar a expressão de diversidade e amabilidade das periferias, o autor ressalta os pontos positivos destes cenários tão mal interpretados pelo restante da população. O projeto AmarElo, em todas as mídias em que foi veiculado, emociona o ouvinte ou o espectador do início ao fim.
Katryn Rocha
Auxiliar de Comunicação do VLF Advogados