Discussões envolvendo a taxa de juros legais no direito brasileiro: Selic ou 1% ao mês?
Fernanda Vidigal
Nos últimos anos assistimos ao cenário de alterações estratégicas envolvendo a fixação da meta para a chamada taxa Selic (1). A necessidade de controle da inflação global decorrente da pandemia de Covid-19 teve como consequência a elevação das taxas de juros nos diversos países, fazendo com que, no Brasil, os anos de 2021 e 2022 fossem marcados pela elevação da Selic, que saiu do índice de 2% e alcançou o patamar de 13,75%. Em contrapartida, desde o final de 2023, temos observado a inversão dessa estratégia com a tendência de redução da Selic que, hoje, está fixada pelo Comitê de Política Econômica (“Copom”) em 11,75% (2).
Quando o Banco Central altera a meta para a taxa Selic, os custos das linhas de crédito em geral e a rentabilidade dos títulos indexados a ela também se alteram, impactando na contratação de empréstimos e financiamentos, no nível de consumo da sociedade e nos investimentos. Mas, além de funcionar como ferramenta de controle da política econômica pelo Banco Central, as oscilações na taxa Selic podem também interferir nas relações civis e empresariais, por ser considerada como parâmetro para a fixação dos juros legais no direito brasileiro (3).
A disciplina dos juros e a sua limitação pelo ordenamento jurídico sempre foram alvo de discussões legislativas e judiciais. Em março de 2023, muito provavelmente por influência do contexto econômico experimentado nos últimos anos e da retomada das atenções para as estratégias do Copom de determinação da meta da Selic, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) iniciou novo julgamento envolvendo a definição da taxa de juros legais a ser aplicada às relações privadas. Trata-se do Recurso Especial (“REsp”) nº 1.795.982 que, atualmente, está em vista coletiva e já possui divergência instaurada entre os Ministros julgadores (4).
O que são juros e quais as suas classificações?
Os juros são comumente conceituados como os frutos civis do capital ou a remuneração paga pelo devedor ao credor pela disponibilidade do dinheiro ou do bem (5). Diferentemente da correção monetária, que é estipulada em razão da desvalorização da moeda ao longo do tempo, os juros têm como finalidade remunerar o titular do dinheiro ou do bem pelo seu uso pelo credor, com a consequente privação de uso pelo titular original durante certo período (6).
Podem ser classificados em juros moratórios e juros compensatórios (também chamados de remuneratórios). Os juros moratórios são devidos em razão do atraso do credor em adimplir a sua obrigação, prolongando a privação de uso da coisa pelo seu titular, como forma, portanto, de remunerar tal período de atraso. Já os juros compensatórios buscam remunerar o proprietário do capital pela sua privação do bem e pelos riscos decorrentes do negócio independentemente de qualquer atraso ou inadimplemento por parte do devedor, de modo a compensar os frutos que poderiam ser atribuídos ao credor e pelos riscos que seriam evitados caso o capital permanecesse sob a sua titularidade (7).
Imagine-se situação em que a sociedade A empresta recursos para a sociedade B, permitindo que esta realize aportes em determinado empreendimento. A sociedade B (mutuária) deverá devolver o valor emprestado para a sociedade A (mutuante) após prazo por elas comumente fixado, permitindo que o empreendimento objeto do investimento gere lucros para a sociedade B e que, inclusive, tais lucros sejam utilizados para pagamento do valor que lhe foi mutuado pela sociedade A. Neste cenário, ao final do prazo estipulado, além do valor originalmente emprestado, a sociedade B também deverá pagar à sociedade A juros a título de remuneração pelo empréstimo realizado. Esta situação será referida a seguir como “Exemplo 1”.
Em situação diversa, suponha-se uma operação de compra e venda de ações de uma companhia, na qual é fixado o pagamento de um preço em contrapartida à transferência das ações da vendedora para a compradora. As partes estabelecem contratualmente que, caso a compradora atrase ou deixe de efetuar o pagamento do preço devido à vendedora, ela estará sujeita à incidência de juros e de correção monetária, além de multa pelo inadimplemento e eventuais perdas e danos. Esta hipótese será referida a seguir como “Exemplo 2”.
O Exemplo 1 ilustra de forma clara a aplicação de juros compensatórios, que incidem pela mera privação do uso do dinheiro pelo seu titular; enquanto o Exemplo 2 demonstra a incidência de juros moratórios a fim de remunerar o atraso no pagamento de uma obrigação.
Adicionalmente, os juros, sejam eles moratórios ou compensatórios, podem ser caracterizados como juros convencionais, que são previstos pela manifestação de vontade das partes, ou juros legais, que decorrem da lei.
A discussão envolvendo a taxa de juros legais no Brasil
Como visto, a taxa de juros legais é aquela estipulada pela legislação brasileira e que se aplica às relações civis caso as partes não tenham convencionado juros ou caso tenham convencionado, mas sem pactuar o valor da respectiva taxa.
No caso do Exemplo 1, se as partes não determinarem o valor da taxa de juros aplicável para a remuneração do mútuo, incidirá a taxa de juros prevista na lei. Da mesma forma, no Exemplo 2, se as partes não estipularem juros para o atraso no pagamento das parcelas do preço de aquisição, limitando-se a prever multa e correção monetária, ainda assim, uma vez caracterizada a mora, serão aplicáveis os juros legais.
Além disso, a definição da taxa de juros legais é relevante para fins da interpretação do art. 1º do Decreto nº 22.626/1933 (“Lei da Usura”), que veda a previsão de juros convencionais, em quaisquer contratos, em taxas superiores ao dobro da taxa legal (8). Esta previsão, entretanto, possui algumas exceções – por exemplo, não se aplica às instituições que integram o Sistema Financeiro Nacional (9), que não possuem limite para a fixação de juros; nem aos mútuos para fins econômicos, cuja limitação é o próprio valor da taxa legal (e não o seu dobro), nos termos do art. 591 do Código Civil (10).
Assim, no Exemplo 1, em se tratando de mútuo tomado pela sociedade B para aplicação em sua atividade econômica, os juros eventualmente pactuados pelas partes não poderão exceder o valor da taxa legal. Já no contrato de compra e venda de ações do Exemplo 2, caso as partes convencionem os juros, estes não poderão ser superiores ao dobro da taxa legal.
Mas, afinal, qual é a taxa de juros fixada pela lei? As controvérsias decorrem da redação do art. 406 da Lei nº 10.406/2002 (“Código Civil”), que estabelece que a taxa de juros legais no Brasil é a “taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional” (11).
Parte da doutrina e da jurisprudência entende que a taxa indicada pelo dispositivo do Código Civil é aquela definida pelo art. 13 da Lei nº 9.065/1995 (12), qual seja, a taxa Selic. Existe, no entanto, uma segunda corrente que defende que o art. 406 do Código Civil, ao mencionar a taxa aplicável para a mora do contribuinte perante a Fazenda Nacional, se refere à regra do art. 161, §1º, da Lei nº 5.172/1966 (“Código Tributário Nacional” ou “CTN”) (13), que estabelece que os juros de mora serão calculados à taxa de 1% ao mês.
Os fundamentos e as razões levantadas por cada corrente já foram objeto de análise em artigo publicado pelo VLF Advogados, no qual defendemos a aplicação da Selic como taxa de juros legais (14).
No âmbito do STJ, a matéria foi inicialmente apreciada pela Corte Especial, em 2008, no julgamento dos Embargos em Recurso Especial (“EREsp”) nº 727.842, que teria pacificado o entendimento de que a taxa referida pelo art. 406 do Código Civil seria a taxa Selic. Apesar disso, o assunto continuou sendo debatido não apenas pela doutrina, como pelos tribunais estaduais brasileiros e pelo próprio STJ, tendo o tema sido novamente afetado para definição colegiada.
O julgamento do REsp nº 1.795.982
O caso que originou o REsp nº 1.795.982 envolveu a condenação, em primeiro grau, de empresa de transporte rodoviário ao pagamento de indenização à passageira de ônibus envolvida em acidente de trânsito. A empresa recorreu da sentença, porém a decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (“TJSP”), que fixou a indenização à passageira e determinou, ainda, o acréscimo de juros de mora de 1% ao mês e correção monetária. A companhia condenada interpôs o REsp ao STJ pedindo a aplicação da taxa Selic.
O Ministro Relator Luis Felipe Salomão defendeu a manutenção dos juros de 1% ao mês, nos termos do art. 161, §1º, do CTN, sob as principais justificativas de que (i) a metodologia de acumulados mensais empregada no cálculo da Selic não cobre a inflação e desestimula o cumprimento da obrigação pelo devedor civil para fins de juros moratórios; (ii) a taxa Selic não é um espelho do mercado, mas sim o principal instrumento de política monetária utilizado pelo Banco Central no combate à inflação, não sendo apropriada para a remuneração ao titular do capital; (iii) a fixação da Selic tem como objetivo intervir na inflação para o futuro e não para refletir a inflação passada; e (iv) a Selic poderia conduzir a situações paradoxais de enriquecimento sem causa, e, ao mesmo tempo, de incentivo à litigância habitual, uma vez que o devedor teria ciência de que sua mora não acarretaria grandes consequências patrimoniais.
Além disso, ressaltou que já houve períodos em que a taxa Selic foi negativa, o que levou ao pagamento de juros pelo credor ao devedor, o que seria uma incoerência, concluindo que os juros de 1% ao mês trazem maior previsibilidade e segurança às relações privadas.
O Ministro Raul Araújo divergiu do Relator, votando favoravelmente à utilização da taxa Selic para os juros legais. Segundo ele, (i) os dispositivos do Código Civil decorrem de opção consciente do legislador, que buscou acompanhar e se harmonizar com as escolhas de política econômica do país ao longo de décadas, e o art. 406 do Código Civil deve ser interpretado de forma literal; (ii) a jurisprudência da Corte Especial do STJ já teria pacificado o entendimento de aplicação da taxa Selic; (iii) deveria prevalecer coerência entre as taxas aplicadas nas relações públicas e privadas; (iv) os juros moratórios não teriam função punitiva, mas sim remuneratórias, e as condenações submetidas a juros de mora de 1% ao mês conduzem à situação em que o credor obtém remuneração muito superior a de qualquer aplicação financeira; e (v) a flutuação da Selic não se revela ponto de desprestígio para a sua utilização e não serve de estímulo à litigância abusiva.
Araújo citou, ainda, a Emenda Constitucional nº 113/2021, que estipula a Selic, acumulada mensalmente, como taxa única em vigor para atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora em todas as demandas que envolvem a Fazenda Pública.
Até o momento, o Ministro João Otávio de Noronha acompanhou a divergência de Araújo, enquanto o Ministro Humberto Martins manifestou seu voto no mesmo sentido do Relator. O recurso está em vista coletiva após pedido feito pelo Ministro Benedito Gonçalves e os integrantes da Corte Especial não podem solicitar mais tempo para analisar a questão.
É inegável a relevância do assunto, com implicações diretas para as relações civis e empresariais brasileiras e o STJ possui, novamente, a chance de consolidar seu entendimento sobre a qual taxa de juros se refere o art. 406 do Código Civil, definição que pode ocorrer ainda nos primeiros meses de 2024.
Fernanda Marra Vidigal
Advogada da Equipe de Consultoria do VLF Advogados
(1) Taxa do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (“Selic”) cuja meta é fixada pelo Copom, órgão do Banco Central, que assim a define: “A taxa Selic é a taxa básica de juros da economia, que influencia outras taxas de juros do país, como taxas de empréstimos, financiamentos e aplicações financeiras. A definição da taxa Selic é o principal instrumento de política monetária utilizado pelo Banco Central (BC) para controlar a inflação. A Selic é a taxa de juros média praticada nas operações compromissadas com títulos públicos federais com prazo de um dia útil. O BC realiza operações no mercado de títulos públicos para que a taxa Selic efetiva esteja em linha com a meta da taxa Selic, que é definida pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do BC” (BANCO CENTRAL DO BRASIL. Taxa Selic, disponível em: https://www.bcb.gov.br/controleinflacao/taxaselic. Acesso em: 23 jan. 2024).
(2) Conforme Reunião nº 259 do Copom, realizada em 13 de dezembro de 2023. O histórico da taxa Selic está disponível em: https://www.bcb.gov.br/controleinflacao/historicotaxasjuros. Acesso em: 23 jan. 2024.
(3) Sobre a natureza, o cálculo e a fixação da meta da taxa Selic pelo Copom, e respectivos impactos no mercado, ver: LOPES, Christian Sahb Batista. Ainda sobre a taxa legal de juros no Código Civil de 2002. In: BARBOSA, Henrique; SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A Evolução do Direito Empresarial e Obrigacional: Os 18 Anos do Código Civil – Obrigações e Contratos. São Paulo: Quartier Latin, 2021, v. 2, p. 561-584.
(4) STJ, REsp nº 1.795.982; Relator: Min. Luis Felipe Salomão; Órgão Julgador: Corte Especial; Autuação: 13/02/2019; Número Único: 1031901-02.2014.8.26.0576.
(5) Para a definição de juros, ver: PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. v. 2, p. 110; MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959. t. 24, p. 16; e GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, v. 2, p. 404.
(6) LOPES, Christian Sahb Batista; RIBEIRO, Mariana Richter. A disciplina dos juros no direito brasileiro após o advento do Código Civil de 2002. Meritum: revista de direito da Universidade FUMEC, v. 9, nº 1, Jan./Jun. 2014. Belo Horizonte: Universidade FUMEC, 2006, p. 15-66.
(7) LOPES, Christian Sahb Batista; RIBEIRO, Mariana Richter. A disciplina dos juros no direito brasileiro após o advento do Código Civil de 2002. Meritum: revista de direito da Universidade FUMEC, v. 9, nº 1, Jan./Jun. 2014. Belo Horizonte: Universidade FUMEC, 2006, p. 15-66.
(8) Lei da Usura, art. 1º: “É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal”.
(9) Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal: “As disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional”.
(10) Código Civil, art. 591: “Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual”.
(11) Código Civil, art. 406: “Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”.
(12) Lei nº 9.065, de 20 de junho de 1995, art. 13: “A partir de 1º de abril de 1995, os juros de que tratam a alínea c do parágrafo único do art. 14 da Lei nº 8.847, de 28 de janeiro de 1994, com a redação dada pelo art. 6º da Lei nº 8.850, de 28 de janeiro de 1994, e pelo art. 90 da Lei nº 8.981, de 1995, o art. 84, inciso I, e o art. 91, parágrafo único, alínea a.2, da Lei nº 8.981, de 1995, serão equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente.”
(13) Enunciado nº 20, I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês.”
CTN, art. 161, §1º: “Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de um por cento ao mês.”
(14) OLIVEIRA, Lucas Sávio; PITERES, Aline. Qual é a taxa legal de juros? 1% ao mês? Informativo VLF – 35/2017, disponível em: https://www.vlf.adv.br/noticia_aberta.php?id=424. Acesso em: 23 jan. 2024.
Ver também: LOPES, Christian Sahb Batista. Ainda sobre a taxa legal de juros no Código Civil de 2002. In: BARBOSA, Henrique; SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A Evolução do Direito Empresarial e Obrigacional: Os 18 Anos do Código Civil – Obrigações e Contratos. São Paulo: Quartier Latin, 2021, v. 2, p. 561-584.