Marco Legal das Garantias: contexto, visão geral e reflexões iniciais sobre hipoteca e alienação fiduciária
Karem Barcelos e Leila Bitencourt
1) Contexto e estrutura geral do Marco Legal das Garantias
A Lei nº 14.711/2023 (“Marco Legal das Garantias”) decorreu do Projeto de Lei nº 4.188/2021 (“PL 4.188/2021”), apresentado em novembro de 2021 pelo Poder Executivo para tratar sobre diversos temas (garantias, resgate antecipado de Letra Financeira, transferência de valores de fundo de educação e alterações na composição do Conselho Nacional de Seguros Privados) (1).
Em síntese, a justificativa apresentada pelo Ministério da Economia ao encaminhar a referida proposta de lei foi diminuir os efeitos da pandemia na economia, proteger a população economicamente vulnerável, manter empregos, impedir o fechamento de empresas, além de corrigir falhas, aumentar e melhorar as condições de oferta de crédito no Brasil. Também se mencionou o estímulo à adoção de garantias no país e a preocupação com a possível falta de lastro em operações de crédito, típica em cenários pós-crise (2).
No que diz respeito à redução das taxas de juros, algumas previsões do Marco Legal das Garantias buscam diminuir os encargos operacionais das instituições financeiras e, assim, incentivar a queda nos juros (o que, por sua vez, ampliaria as opções de oferta de crédito ao mercado). Afinal, o valor dos juros aplicado a um empréstimo é determinado com base na avaliação dos custos e riscos percebidos pela instituição financeira em relação ao reembolso do montante emprestado: quanto maior o risco percebido, maiores são os valores e vice-versa (3).
No contexto brasileiro, argumenta-se que a velocidade de recuperação de ativos utilizados como garantia representa considerável risco percebido pelas instituições financeiras. De acordo com dados do Banco Mundial, o país apresenta uma das mais baixas taxas de recuperação judicial das garantias de crédito em todo o mundo (apenas 18,2%, enquanto a média dos países emergentes é de 42,5%) (4).
Após tramitação do PL 4.188/2021, alguns pontos foram vetados pela Presidência da República, em 22 de novembro de 2023, com destaque para os seguintes temas: a possibilidade de busca e apreensão feita pelo oficial de registro de títulos e documentos de bens dados em garantia em alienação fiduciária caso a dívida não seja paga pelo devedor, a dispensa de depósito prévio de emolumentos para o protesto de dívidas vencidas a menos de 120 dias, dentre outros (5).
A principal justificativa para o veto consiste no argumento de vício de inconstitucionalidade por afirmar que a modalidade extrajudicial de busca e apreensão do bem móvel alienado fiduciariamente em garantia, sem que haja ordem judicial para tanto, violaria a cláusula de reserva de jurisdição e, ainda, poderia criar risco a direitos e garantias individuais, como os direitos ao devido processo legal (5).
O próprio Congresso, todavia, rejeitou o veto em 14 de dezembro de 2023. Portanto, os artigos antes vetados estão de volta ao texto do Marco Legal das Garantias (6). Além disso, em 14 de fevereiro de 2024, foi protocolada a ADI 7.601, que questiona o procedimento de busca e apreensão privada (art. 6º do Marco Legal das Garantias), a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca (art. 9º da Lei) e a execução extrajudicial da garantia imobiliária em concurso de credores (art. 10 do Marco Legal das Garantias) (7).
São esses os principais pontos do contexto do Marco Legal das Garantias. O próximo tópico aborda o extenso conteúdo da lei, em especial as alterações que trataram sobre hipoteca e alienação fiduciária.
2) Visão geral do Marco Legal das Garantias
O Marco Legal das Garantias pode ser dividido em quatro blocos, contendo seus 18 artigos, que trazem alterações em várias normas.
O primeiro bloco sintetiza o objeto da norma: aprimorar as regras sobre crédito, garantias e estabelecer medidas extrajudiciais para recuperação creditícia (art. 1º do Marco Legal das Garantias).
O segundo bloco disciplina as alterações relacionadas a cartórios (tabelionatos e ofícios). Esse conjunto de mudanças ampliou as possibilidades de serviços prestados pelas diversas serventias, especialmente quanto à execução extrajudicial de garantias (artigos 5º, 11 e 12 do Marco Legal das Garantias) (8).
O terceiro bloco diz respeito às alterações normativas relacionadas à concessão de crédito, com destaque para: (i) alteração no resgate antecipado da Letra Financeira previsto na Lei nº 12.249/2010; (ii) novas previsões sobre os limites da redução do imposto de renda de rendimentos advindos de fundo de investimento cujo beneficiário esteja fora do Brasil; (iii) e mudanças na Lei nº 6.404/1976 (“Lei das S/A”) no que tange à emissão de debêntures (artigos 7º, 13 a 16 e art. 18, II e IV do Marco Legal das Garantias) (9).
O quarto bloco, por fim, contém as principais mudanças sobre alienação fiduciária e hipoteca (artigos 2º ao 10º do Marco Legal das Garantias).
O próximo tópico aborda essas garantias.
3) Hipoteca e alienação fiduciária: conceitos e diferenciação central
Apesar de pertencerem ao mesmo ramo do Direito, a hipoteca e a alienação fiduciária são diferentes espécies de Direito Real de garantia (10) (11). Na hipoteca, em regra, um bem imóvel é dado ao credor como garantia de pagamento em favor do devedor (normalmente o hipotecante). Existe, porém, a possibilidade de hipoteca de alguns bens móveis, como as aeronaves, por exemplo (12) (13). O bem, contudo, continua em poder do devedor, embora assegurando ao credor (hipotecário) o pagamento da dívida.
Destaca-se, assim, que, na hipoteca o devedor exerce todos os seus direitos de uso e de percepção dos frutos do bem hipotecado (14). A hipoteca depende do registro imobiliário na matrícula do imóvel e o fato de poder garantir dívidas a torna um poderoso instrumento de acesso ao crédito (15). Sua principal previsão legal está nos artigos 1473 a 1501 do Código Civil.
A alienação fiduciária também pode recair em bens móveis ou imóveis (16), mas, nesta modalidade de garantia, o devedor (fiduciante) transfere ao credor (fiduciário) a propriedade do bem para garantir o pagamento da dívida. No entanto, trata-se de uma “propriedade resolúvel’, ou seja, apenas para fim de garantia do pagamento. O devedor, por sua vez, fica com a posse direta. Uma vez quitada a dívida, a propriedade se resolve e o bem volta a ser do fiduciante.
Daí se dizer que “a alienação fiduciária é a transferência, ao credor, do domínio e posse indireta de uma coisa, independentemente de sua tradição efetiva, em garantia do pagamento de obrigação a que acede, resolvendo-se o direito do adquirente com a solução da dívida garantida” (17).
O fato de a alienação fiduciária em garantia transferir a propriedade ao credor torna essa garantia real o mais efetivo instrumento para prover a segurança de que a obrigação será cumprida, pois o bem permanece no patrimônio do credor, que, assim, não precisa se preocupar com a deterioração da situação patrimonial do devedor (18).
Existem vários tipos de alienação fiduciária, cada qual com normas específicas aplicáveis, dentre as quais se destacam: “a) coisa móvel infungível (Código Civil, artigos 1.361 a 1.368-B); b) bem imóvel e direitos imobiliários (Lei n. 9.514/1997, art. 22 a 33); c) direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis (Lei n. 9.514/1997, art. 19 e 20); e d) aeronaves (Código Brasileiro de Aeronáutica – Lei n. 7.565/1986, artigos 148 a 152)” e “e) Decreto-Lei nº 911/69 que regulamenta a alienação em garantia no âmbito dos mercados financeiro e de capitais”(18).
Portanto, a principal diferença entre hipoteca e alienação fiduciária consiste no fato de que a primeira garantia recai sobre coisa alheia, pois o devedor hipotecário continua com o bem, e, na alienação fiduciária, há transferência da propriedade resolúvel ao credor (19). Compreendidos os principais pontos dos conceitos e a principal diferença entre hipoteca e alienação fiduciária, a seguir, serão listados quais foram os tópicos do Marco Legal que trataram sobre essas duas garantias.
O art. 2º promoveu alterações na alienação fiduciária de bem imóvel, com destaque para a possibilidade de realização de constituir sucessivas garantias dessa modalidade sobre um mesmo imóvel.
Ressalta-se, ainda, o art. 3º, que alterou o Código Civil e estabelece normas aplicáveis ao contrato de administração fiduciária de garantias, que diz respeito à possibilidade de que qualquer garantia poderá ser constituída, levada a registro, gerida e ter a sua execução pleiteada por agente de garantia.
O art. 4º disciplina a possibilidade da extensão da alienação fiduciária de imóvel. Destaca-se, ainda, a alteração no Código de Processo Civil para inserir o contrato de contragarantia ou qualquer outro instrumento que materialize o direito de ressarcimento da seguradora como título executivo extrajudicial, conforme prevê o art. 8º do Marco Legal das Garantias.
Ademais, destacam-se os artigos 9º e 10º, os quais possuem previsões sobre a execução extrajudicial dos créditos assegurados por hipoteca e da execução extrajudicial em concurso de credores de hipoteca de bem imóvel. Aconteceram, ainda, revogações de pontos da cédula hipotecária e de alienação fiduciária (art. 18, I, III e V do Marco Legal das Garantias).
4) Breves reflexões finais
O Marco Legal das Garantias tem origem no PL 4.188/2021 e menciona, como justificativa central, o amparo ao crédito para afastar os impactos da pandemia da Covid-19 na economia. Em busca desse amparo, a nova Lei alterou muitas normas e institutos jurídicos, dentre eles uma série de previsões relacionadas a garantias. Parte considerável das alterações trataram da hipoteca e da alienação fiduciária, razão essas duas garantias foram abordadas com mais detalhe neste texto.
Houve, ainda, o aumento das possibilidades de atuação dos cartórios em casos de descumprimentos de pagamento de dívidas e outros pontos que serão analisados nos próximos textos desta série.
Karem Barcelos
Advogada da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
Leila Bitencourt
Advogada da Equipe de Consultoria e Compliance do VLF Advogados
(1) TEXTO de apresentação do PL 4188/2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2112509. Acesso em: 21 fev. 2024.
(2) NOVO Marco de Garantias vai facilitar a concessão de crédito e estimular o crescimento. Ministério da Economia, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2022/junho/novo-marco-de-garantias-vai-facilitar-a-concessao-de-credito-e-estimular-o-crescimento. Acesso em: 16 fev. 2024.
(3) DOURADO, Maria Luiza. Marco Legal das Garantias permite uso de imóvel para contrair mais de um empréstimo; saiba como funciona. InfoMoney, 2023. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/minhas-financas/marco-legal-das-garantias-como-funciona-imovel-contrair-emprestimos/. Acesso em: 16 fev. 2024.
(4) Banco Mundial, Business Pulse Survey Dashboard, dados de 2020-2021. Disponível em: https://www.worldbank.org/en/data/interactive/2021/01/19/covid-19-business-pulse-survey-dashboard. Acesso em: 16 fev. 2024.
(5) BRASIL, Presidência da República. Casa Civil. Mensagem nº 560, de 30 de outubro de 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Msg/Vep/VEP-560-23.htm. Acesso em: 21 fev. 2024.
(6) SENADO FEDERAL. Derrubados vetos ao Marco Legal das Garantias de Empréstimos. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/12/14/derrubados-vetos-ao-marco-legal-das-garantias-de-emprestimos#:~:text=Em%20sess%C3%A3o%20conjunta%20nesta%20quinta,mat%C3%A9ria%20ser%C3%A1%20encaminhada%20%C3%A0%20promulga%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 21 fev. 2024.
(7) STF. AMB questiona regras sobre perda de bens previstas no Marco Legal das Garantias. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=527283&ori=1#:~:text=O%20Marco%20Legal%20das%20Garantias,e%20contrate%20empresas%20especializadas%20na. Acesso em: 21 fev. 2024.
(8) Os artigos 5º, 11 e 12 do Marco Legal das Garantias alteraram as seguintes leis: Lei nº 6.015/73 – Lei de Registros Públicos; Lei nº 9.492/97 – que disciplina o protesto de títulos e outros documentos de dívida e a Lei 8.935/94 – também chamada de Lei dos Notários e Registradores.
(9) As mudanças trataram sobre os seguintes temas: a adição da possibilidade de o imóvel ser dado em garantia em financiamento de lote urbanizado na Lei nº 6.766/79 – Lei de Parcelamento de Solo Urbano (art. 7º do Marco Legal das Garantias); a alteração sobre o resgate antecipado da Letra Financeira previsto na Lei nº 12.249/10 (art. 13 do Marco Legal das Garantias); o acréscimo de parágrafo que trata sobre a transferência de recursos no âmbito do fundo de educação disciplinada pela Lei nº 14.113/20 (art. 14 do Marco Legal das Garantias); a mudança na disciplina de apresentação de extratos eletrônicos relativos a bens móveis disciplinada pela Lei nº 14.382/22 – popularmente chamada de Nova Lei de Registros Públicos (art. 17 do Marco Legal das Garantias); a revogação e adição de novas previsões sobre os limites da redução do imposto de renda de rendimentos advindos de fundo de investimento cujo beneficiário esteja fora do Brasil, tema disciplinado na Lei nº 11.312/06 (art. 15 do Marco Legal das Garantias), as mudanças na Lei nº 6.404/76 – Lei das S/A – no que tange à emissão de debêntures e também revogações nessa norma (art. 16 e 18, IV do Marco Legal das Garantias); revogações sobre o Conselho Nacional de Seguros Privados tratada pelo Decreto-Lei nº 73/66 (art.18, II do Marco Legal das Garantias).
(10) Diretos Reais, em apertadíssima síntese, regulam as relações jurídicas relativas às coisas apropriáveis pelos sujeitos de direito. Mas existe uma discussão sobre a conceituação de bem e coisa que não será objeto deste texto.
(11) Para definição de direitos reais, ver: VENOSA, Sílvio de S. Direito Civil: Direitos Reais. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023, p. 19-24.
(12) GOMES, Orlando. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2012, p. 381-382.
(13) Código Civil, Art. 1.473: Podem ser objeto de hipoteca: I – os imóveis e os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles; II – o domínio direto; III – o domínio útil; IV – as estradas de ferro; V – os recursos naturais a que se refere o art. 1.230, independentemente do solo onde se acham; VI – os navios; VII – as aeronaves. VIII – o direito de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007) IX – o direito real de uso; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007); X – a propriedade superficiária; (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023); XI – os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023).
(14) PEREIRA, Caio Mário da S. Instituições de Direito Civil: Direitos Reais. v. IV. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022, p. 336.
(15) TEPEDINO, Gustavo; FILHO, Carlos Edison do Rêgo M.; RENTERIA, Pablo. Fundamentos do Direito Civil: Direitos Reais. v. 5. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023, p. 500.
(16) GOMES, Orlando. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2012, p. 357-359.
(17) PEREIRA, Caio Mário da S. Instituições de Direito Civil: Direitos Reais. v. IV. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022, p. 383.
(18) TEPEDINO, Gustavo; FILHO, Carlos Edison do Rêgo M.; RENTERIA, Pablo. Fundamentos do Direito Civil: Direitos Reais. v. 5. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023, p. 550-565.
(19) GOMES, Orlando. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2012, p. 358.